Explorando a Rica Cultura de Angola e Portugal

Angola em Mim — Memórias da Cela e da Infância Perdida
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Com ilustrações tradicionais inspiradas na infância angolana
Edição de Autor
Santa Comba, Cela / Middleton, Idaho 2025
📄 2. PÁGINA DE DIREITOS AUTORAIS
© 2025 João Elmiro da Rocha Chaves
Todos os direitos reservados.
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ISBN: (a ser atribuído)
Edição: Primeira
Editor: Edição de Autor
Design e Ilustrações: Criado com apoio da IA generativa DALL·E sob orientação do autor
Revisão: 01
Impressão e Distribuição: ()
Dedicatória
Aos meus pais e à minha família,
que me transmitiram o valor do saber
e enraizaram em mim a dignidade que se leva pela vida.
Aos meus amigos de infância —
Humberto, Joaquim, Pedro, Saul, José e Zé Luís —
irmãos de chão, de cadernos, de sonhos e de silêncio,
com quem partilhei o pão, o riso e a eternidade dos dias simples.
Ao Professor Manuel Bento,
cuja régua ensinava com justiça
e cujas palavras moldaram em mim
não só a escrita, mas a consciência.
E a ti, Angola...
minha pátria da alma,
onde fui menino e onde continuo a ser memória,
mesmo longe, mesmo calado,
sempre presente em mim.
Prefácio
Há memórias que não se apagam — não porque sejam grandiosas, mas porque nelas habita a essência da nossa identidade. São feitas de pequenos gestos, de risos partilhados, de tradições que, embora simples, moldaram o que somos. Este livro nasce desse lugar íntimo e sagrado onde a infância se cruza com a história, onde Angola, ainda jovem e vibrante, se revela através dos olhos de um menino chamado Miro.
Nos pátios poeirentos da Escola Industrial e Comercial Narciso do Espírito Santo, em Santa Comba, Cela, não se aprendia apenas a ler e a escrever. Aprendia-se a crescer. Aprendia-se o valor da amizade, a coragem de pertencer e o sabor agridoce do tempo a passar. Foi ali, debaixo do céu imenso de África, que se iniciaram laços que o tempo, a distância e a vida nunca conseguiram desatar.
Este livro não é um compêndio de factos históricos, embora a história esteja sempre a espreitar por entre as páginas. É, acima de tudo, uma celebração — dos amigos de infância que se tornaram irmãos de alma, das tradições escolares que marcavam a passagem do desconhecido para o familiar, e de uma Angola que vive, ainda hoje, dentro de mim.
Escrevo estas páginas com o coração entre continentes — um pé firmemente plantado nas memórias de Cela, o outro nas terras frias onde a vida me levou. Entre eles, o oceano da saudade.
Ao leitor, deixo um convite: entre, sente-se comigo à sombra de uma mangueira, e ouça estas histórias como quem escuta o eco de um batuque distante, ou o riso de um grupo de miúdos no recreio. São histórias verdadeiras, sentidas, contadas com amor e com o desejo de que, ao lê-las, também reencontre um pouco da sua própria infância.
Com gratidão e saudade,
João Elmiro da Rocha Chaves "Miro"
Índice
Prefácio – p. 5
Dedicatória – p. 7
Epígrafe – p. 9
Primeira Parte — O Brilho da Infância
Capítulo 1 – O Primeiro Corte
O rito de iniciação e o nascimento da pertença – p. 11
Capítulo 2 – Os Irmãos do Pátio
A descoberta da amizade verdadeira – p. 17
Capítulo 3 – O Recreio e a Bola de Trapos
O jogo como escola de vida – p. 25
Capítulo 4 – O Professor Manuel Bento e a Régua de Madeira
A disciplina que forma carácter – p. 33
Capítulo 5 – A Caderneta e o Orgulho do Pai
O saber como herança emocional – p. 41
Capítulo 6 – A Merenda Partilhada — Sabores de Cela
Afeto embrulhado em papel de jornal – p. 49
Segunda Parte — Quando o Tempo Começou a Mudar
Capítulo 7 – A Primeira Fuga para o Rio
A ousadia da liberdade – p. 57
Capítulo 8 – Mila, o Campeão e o Companheiro Improvável
A liderança que se dá pelo exemplo – p. 65
Capítulo 9 – Chuvas Tropicais e Cadernos Molhados
A vida que escorre tinta e ensina resiliência – p. 73
Capítulo 10 – Quando a Guerra Sussurrava pelas Janelas
Os sinais da ruptura que ninguém queria ouvir – p. 81
Capítulo 11 – O Último Dia de Escola
O adeus que ficou para sempre – p. 89
Fecho
Epílogo – Angola no Coração, Sempre
Quando a terra natal é mais que geografia – p. 97
Agradecimentos – p. 103
Sobre o Autor – p. 107
Capítulo 1
O Primeiro Corte — A Iniciação de Miro
O sol de Cela caía forte naquela manhã clara, projetando sombras nítidas sobre o terreiro batido da Escola Industrial e Comercial Narciso do Espírito Santo, em Santa Comba. A terra avermelhada parecia ferver sob os pés dos meninos que corriam descalços antes do toque da sineta. Era o dia de iniciação dos caloiros — uma cerimónia não-oficial, mas carregada de simbolismo e tradição.
Miro, de apenas dez anos, era um deles. Sentado num banco de madeira tosca ao centro do pátio, com os olhos cerrados e os punhos fechados sobre os joelhos, esperava o seu destino com uma mistura de nervosismo e curiosidade. O cabelo castanho claro, brilhante e meticulosamente penteado pela mãe antes de sair de casa, tornava-se agora alvo de uma espécie de ritual quase sagrado entre miúdos.
Atrás dele, de pé como mestre-de-cerimónias, estava Mila — o carismático finalista de dezasseis anos, conhecido tanto pela sua habilidade desportiva nos campos da escola como pelo seu cabelo preto e rebelde, que lhe caía sobre os ombros como um manto de irreverência. De compleição atlética, com o uniforme ligeiramente suado pelas atividades da manhã, Mila exibia um sorriso maroto enquanto erguia uma pequena tesoura de costura.
— “Fica quieto, Mirito. Isto não vai doer… muito.” — sussurrou ele, soltando uma gargalhada cúmplice.
À volta, os outros caloiros riam e comentavam, aliviados por não estarem ainda sentados naquele trono de madeira. Entre eles, os rostos que marcariam a vida de Miro para sempre: Humberto Filipe Figueiredo, Joaquim Vicente Piteira, Pedro Carvalho, Saul Paradela, José Esteves Pereira, e José Luís Sales Palhares Delgado — todos com expressões de expectativa, gozo e um certo orgulho fraterno.
Mila inclinou-se com cerimónia, e num gesto preciso e quase artístico, cortou com delicadeza um círculo na parte de trás da cabeça de Miro, deixando uma clareira no meio do cabelo que, apesar de minúscula, se tornava o emblema visível da passagem de caloiro para membro da tribo escolar. Era uma pequena humilhação, sim — mas também um sinal de aceitação, de pertença.
As gargalhadas e palmas rebentaram como um trovão de alegria tropical. Miro, ainda de olhos fechados, sentiu o calor do sol, a vibração das vozes, e o leve toque do vento onde antes estivera uma mecha de cabelo. Ao abrir os olhos, viu os seus amigos à volta, os sorrisos abertos, e Mila a estender-lhe a mão como quem passa um testemunho invisível.
Naquele instante, algo mudou dentro de si. Já não era apenas o filho do senhor Elmiro e da dona Maria — era agora um dos nossos. Um miúdo de Cela, forjado na poeira do pátio e na cumplicidade dos risos partilhados.
Era Angola em 1970. Ainda havia tempo para sonhar. Ainda havia espaço para a infância florescer, mesmo com as nuvens de incerteza a pairar ao longe. E naquele pátio quente, com os pés a baterem no chão e o coração a bater mais forte, Miro recebeu o seu primeiro corte — não de cabelo, mas de vida.

Capítulo 2
Os Irmãos do Pátio — Humberto, Joaquim, Pedro, Saul, José e Zé Luís
Se o corte no cabelo selou o início da minha jornada naquela escola, foram eles — os rapazes que riram comigo (e de mim) nesse dia — que moldaram tudo o que veio a seguir. Os meus irmãos do pátio. Com eles, aprendi que crescer não era um acto solitário. Era uma dança, às vezes desajeitada, feita de partilhas, pequenas travessuras, silêncios cúmplices e promessas que, mesmo não ditas, sabíamos que não seriam quebradas.
Humberto Filipe Figueiredo
O primeiro a acolher-me, sem cerimónias. Tinha aquele ar sério de quem já nascera responsável. A camisa sempre abotoada até ao colarinho, mesmo quando o calor apertava. Era o nosso pequeno estratega — calculava os jogos como se fosse um general, e no recreio organizava as equipas como se se tratasse de um campeonato nacional. Ninguém o desafiava: Humberto era justiça e liderança em partes iguais.
Joaquim Vicente Piteira
Nunca ia para a escola sem a sua lancheira de pano, feita pela mãe, bordada com as suas iniciais. Era louro, magro, esguio, com olhos curiosos que pareciam absorver tudo ao redor. Tinha uma inteligência silenciosa, daquelas que não fazia alarde. Quando falava, todos paravam. Trazia na voz uma calma que nos ancorava — mesmo nos dias de castigo coletivo.
Pedro Carvalho
Pedro era o mais rebelde. Tinha o hábito de responder com um encolher de ombros e um sorriso torto, como quem diz "façam o que quiserem, eu sigo o meu caminho". Mas era ele que nos defendia se alguém de fora tentasse gozar connosco. Era leal até à medula e tinha um código de honra próprio, aprendido talvez com o pai ou inventado nos becos da Cela onde cresceu.
Saul Paradela
O palhaço do grupo — e digo-o com carinho. Saul tinha o dom raro de fazer rir até os professores mais carrancudos. A sua voz mudava com personagens, os olhos brilhavam de improviso, e quando falava, até as pedras da escola pareciam querer rir. Mas por detrás dessa alegria, havia também uma doçura imensa. Saul sabia quando calar, quando ouvir. E sabia exatamente quando um amigo precisava de um empurrão ou de um abraço.
José Esteves Pereira
Quieto. Observador. Um poeta em silêncio. José raramente era o primeiro a falar, mas as palavras que dizia ficavam connosco o dia inteiro. Tinha um caderno onde escrevia pensamentos que ninguém via, e muitas vezes era ele que descrevia o que todos sentíamos mas não sabíamos dizer. Quando nos sentávamos à sombra da mangueira, ele olhava o céu como quem conversava com as nuvens.
José Luís Sales Palhares Delgado
Zé Luís era energia em estado puro. Corria, saltava, subia às árvores, e se alguém gritasse “desafio!”, ele já estava a meio do feito. Era o primeiro a dar a cara, o primeiro a rir, o primeiro a cair e a levantar-se a correr. Era impossível ficar aborrecido ao lado dele. Zé Luís era o ritmo da nossa infância — um batuque constante de entusiasmo e movimento.
Juntos, éramos mais do que colegas de turma. Éramos um pequeno exército de sonhos, com os pés sujos de terra e os corações limpos de maldade. Corríamos pelos corredores como se fossem trilhos de aventuras, e cada canto da escola escondia um segredo só nosso. Cada um trazia um traço, uma força, uma ternura — e todos, sem exceção, deixaram em mim um pedaço que nunca se perdeu.
Ainda hoje, passadas tantas décadas, se fecho os olhos e ouço o som abafado de sapatos a correr no recreio, sei que são eles. E sou eu. Outra vez ali. Na Cela. Entre irmãos.

Capítulo 3
O Recreio e a Bola de Trapos
A campainha soava como um grito de liberdade. Era o sinal sagrado que interrompia a monotonia da tabuada e das lições de caligrafia, abrindo as portas do recreio como se abrisse as fronteiras de um reino encantado.
O pátio da escola, com a sua terra batida e fendida pelo calor, tornava-se em segundos num campo de batalha. E o estandarte que nos unia e nos dividia era sempre o mesmo: a bola de trapos.
Não era uma bola como as de catálogo — redondinha, colorida, perfeita. Não. A nossa era feita de meias velhas, enroladas umas nas outras, amarradas com cordéis desfiados, e coberta com uma última camada de tecido surrado que dava o toque final. Um verdadeiro tesouro de improviso, forjado com engenho e necessidade.
Era o Zé Luís quem a trazia quase sempre, escondida dentro da mochila, como um contrabando valioso. Assim que o toque soava, retirava-a com cerimónia e lançava-a ao ar, como quem atira uma estrela para o céu. Começava o jogo.
— "Miúdos contra graúdos!" — gritava o Pedro Carvalho, já com os joelhos sujos e os olhos faiscantes.
Humberto, com a habitual disciplina, organizava as equipas com justiça. Ninguém ficava de fora. O Joaquim Piteira, que raramente corria em vão, assumia a baliza improvisada entre duas pedras. O Saul dava início ao jogo com um grito de guerra seguido de uma gargalhada.
E eu? Eu tentava acompanhar, tropeçando, suando, rindo e correndo atrás daquela bola como se a minha vida dependesse disso. Era ali que esquecíamos os medos, os cortes de cabelo impostos, os cadernos por preencher. Ali, entre passes, fintas e quedas, aprendíamos sobre solidariedade, competição e perdão. Aprendíamos a perder sem desistir, e a ganhar sem humilhar.
Havia dias em que o jogo era interrompido por um berro do senhor Narciso, o director, que de janela aberta bradava:
— "Se estragam o jardim, ficam sem recreio até ao fim do mês!"
Mas nem isso nos demovia. O jardim já não era jardim há muito — era a nossa “Estádio Nacional de Cela”. Cada pedra tinha um nome, cada canto uma história. E no meio, a bola. A nossa bola.
Mesmo nos dias em que o céu ameaçava chuva e o calor tropical se transformava num bafo húmido e denso, o recreio mantinha-se sagrado. A bola molhada escorregava, os joelhos ralavam-se com mais facilidade, mas o jogo nunca parava.
E à medida que a manhã se transformava em tarde e o sino voltava a tocar, regressávamos às salas com as camisas fora das calças, as testas suadas, e os olhos cheios de uma luz que nem a melhor aula conseguia acender.
Porque no recreio, com a bola de trapos aos nossos pés, éramos reis sem trono, guerreiros sem guerra, crianças inteiras.

Capítulo 4
O Professor Manuel Bento e a Régua de Madeira
Se havia alguém que impunha silêncio apenas com a presença, era o Professor Manuel Bento. Alto, forte, de olhos fundos e voz pausada, carregava consigo o peso da sua história: fora padre, antes de trocar o altar pela lousa. E embora tivesse abandonado a batina, nunca deixou de ensinar com a solenidade de quem prega um sermão.
Diferente de outros mestres, não precisava de ameaças para manter a disciplina. Bastava o som da sua régua de madeira a bater levemente no tampo da secretária para que até o mais traquinas se endireitasse. A régua — simples, comprida, de madeira escura — era mais símbolo do que castigo. E ainda que, por vezes, aterrasse com precisão na palma de uma mão malcriada, raramente o fazia com severidade. Bastava a sugestão da punição para devolver o silêncio à sala.
Lembro-me bem de um certo dia em que o Saul Paradela, como sempre cheio de energia, decidiu imitar o Professor durante o recreio. Arranjou um pau comprido, pôs-se de pé numa pedra e começou a marchar:
— "Silêncio absoluto, ou então copiam a lição inteira de cor!"
Todos rebentámos a rir. Até que uma sombra se formou atrás de Saul. O verdadeiro Professor Bento estava ali, braços cruzados, olhar firme mas irónico. O riso morreu-nos nos lábios. Saul congelou.
— "Meu filho," disse o professor, com uma calma quase eclesiástica, "se me vais imitar, ao menos aprende a conjugar os verbos no tempo certo."
Nem um castigo. Só aquela frase, dita com elegância, que nos ensinava mais do que mil palmadas.
Foi com ele que aprendi o peso da palavra certa. Que cada vírgula tem um lugar. Que escrever o nosso nome com orgulho começa por o sabermos escrever bem. E que, no mundo, há regras — umas de gramática, outras de vida — e todas valem ser respeitadas.
Apesar do respeito que inspirava, o Professor Bento tinha um afecto que se revelava nos detalhes: um gesto de incentivo quando escrevíamos um bom ditado; uma pausa no olhar quando alguém vinha triste; ou uma palavra calma quando o erro era fruto de distração e não de desleixo.
Nas reuniões de fim de período, lia em voz alta as melhores redações. E quando me ouvi a mim próprio, lido por ele, com aquele tom solene e sereno de ex-padre, percebi que talvez, só talvez, eu soubesse escrever com o coração.
O Professor Manuel Bento não ensinava apenas gramática. Ensinava dignidade. E mesmo sem bigode, tinha a autoridade de um general — ou de um confessor que conhece bem os pecados e virtudes dos seus fiéis.

Capítulo 5
A Caderneta e o Orgulho do Pai
Ao fim de cada semana, a sexta-feira trazia consigo uma solenidade discreta. Não era feriado nem festa — mas havia um momento que nos deixava a todos com o coração aos pulos: a entrega da caderneta escolar.
A caderneta, de capa azul ou castanha, dobradiça com o tempo, era o nosso boletim pessoal de virtudes e falhas. Cada folha contava uma história — escrita pela mão do professor, carimbada com tinta azul, rubricada com a firmeza de quem observava, corrigia e formava.
Na minha, via-se de tudo: elogios discretos — "Mostra aplicação nas leituras", "Boa caligrafia", "Participa com entusiasmo". Mas também as chamadas de atenção que faziam tremer o corpo pequeno — "Distraído em aula", "Precisa de melhorar a atenção", ou o temido "Muito conversador com os colegas".
Mas o que realmente importava era o momento em que chegávamos a casa e colocávamos a caderneta sobre a mesa da cozinha. Ali, entre o arroz com feijão e o cheiro de café quente, aguardávamos o julgamento.
O meu pai, homem de poucas palavras e olhar firme, pegava na caderneta como quem pega numa relíquia. Sentava-se em silêncio, franzia o sobrolho, lia linha por linha — e eu ali, quieto, quase sem respirar.
Se a avaliação era boa, ele apenas dizia:
— “Muito bem, Miro. Continua assim.”
Mas bastava aquele "Muito bem", dito sem exageros, para o peito se encher de um orgulho difícil de descrever. Era como receber uma medalha invisível, colocada com respeito por um general da vida.
Se, por outro lado, a nota não era tão boa, ele não gritava. Apenas pousava a caderneta, cruzava os braços e dizia:
— “Sabes o que tens de fazer.”
Era o suficiente. E eu sabia.
Houve um dia em particular que ficou gravado na minha memória: o Professor Manuel Bento escrevera algo mais pessoal — "Elmiro demonstra sensibilidade rara para a escrita. Recomendo incentivo em casa."
O meu pai leu aquilo devagar, repetiu em voz baixa, e depois olhou para mim com uma expressão que misturava surpresa, ternura e orgulho. Levantou-se, foi até ao quarto e voltou com um caderno novo, de capa preta.
— “Toma. Escreve tudo o que te vier à cabeça. Um dia vais gostar de reler.”
Foi o meu primeiro caderno de memórias. E talvez tenha sido ali, naquele instante simples, à mesa da cozinha, com a caderneta ao lado e o sol a cair pelas janelas da Cela, que nasceu o escritor que hoje lhe conta estas histórias.

Capítulo 6
A Merenda Partilhada — Sabores de Cela
O recreio não era só sinónimo de correria e bola de trapos. Havia um momento que nos reunia de forma quase cerimonial, como um pequeno ritual de irmandade: a merenda.
Cada um trazia de casa o que podia, o que havia, o que as mãos maternas conseguiam preparar. E, ainda assim, a magia da partilha transformava tudo em banquete.
Sentávamo-nos à sombra da grande mangueira, em roda ou em fila junto à parede quente da escola. As mochilas, feitas de pano grosso, já gastas nos cantos, revelavam pequenos tesouros envoltos em panos, folhas de jornal ou saquinhos de papel reutilizado.
O Pedro Carvalho trazia sempre pedaços generosos de pão caseiro, rijos por fora e macios por dentro, que a mãe cozia ao sábado num forno partilhado pela vizinhança. Era pão com cheiro de aldeia e gosto de abraço.
O Saul Paradela, claro, fazia piadas com tudo o que via — transformava uma banana em microfone, ou dizia que os bolinhos de milho da sua avó eram explosivos secretos da tropa.
O Joaquim Vicente Piteira comia devagar, saboreando cada dentada como se fosse um ritual.
O José Esteves Pereira anotava mentalmente o que cada um trazia, talvez já escrevendo, em silêncio, um poema sobre o momento.
O Zé Luís Sales Palhares Delgado, enérgico como sempre, raramente terminava o lanche — dava uma dentada, partia o resto com as mãos sujas de terra e gritava:— “Quem quer troca?”
Trocávamos pedaços de bolacha por amendoins torrados, goiabada por mandioca cozida, um naco de chouriço por um doce de ginguba embrulhado em papel de caderno.
Eu, por vezes, trazia fatias de pão com manteiga e açúcar, embrulhadas num guardanapo dobrado em triângulo. Quando o meu pai conseguia comprar queijo no mercado do sábado, vinha uma fatia, fina mas preciosa, embrulhada com todo o cuidado pela minha mãe.
Mas a merenda não era sobre abundância. Era sobre gesto. Sobre dar o que se tinha — mesmo que pouco.
Lembro-me de um dia em que um colega, novo na turma e tímido, não tinha nada. Ficou a um canto, fingindo não ter fome. O Humberto Filipe Figueiredo, sempre atento, foi até ele, partiu o pão ao meio e disse apenas:— “A comida só é boa quando é dividida.”
Silêncio. Depois, um sorriso. E a roda cresceu para o incluir.
Era assim em Santa Comba - Cela. Não havia luxo. Mas havia riqueza da alma. A merenda era prova disso — um banquete de afecto, de infância, de Angola viva em cada dentada.

Capítulo 7
A Primeira Fuga para o Rio
Na Cela, havia segredos que se sussurravam entre os muros da escola e os trilhos de terra batida. Nenhum, porém, tão fascinante quanto o rio. Ouvíamos falar dele como se fosse uma entidade mágica, um lugar proibido e sagrado onde os rapazes mais velhos iam nadar, pescar ou simplesmente desaparecer por horas.
Para nós, os caloiros, o rio era um mito. Diziam que era perigoso. Que havia cobras, correntes traiçoeiras, e que o senhor Narciso — perdão, o Professor Bento — suspenderia qualquer aluno que fosse apanhado a caminho da margem.
Foi numa sexta-feira quente, depois da última aula da manhã, que a ideia nasceu, num sussurro entre o Pedro Carvalho e o Zé Luís:
— “E se fôssemos... hoje?”
O plano formou-se num instante. Nada de mochilas. Nada de farda. Só a vontade. O Humberto hesitou. O Joaquim torceu o nariz. Mas a curiosidade venceu. Até o José Esteves fechou o caderno e disse em voz baixa:
— “Uma memória assim escreve-se com os pés.”
Saímos pela lateral da escola, por entre as bananeiras e o mato rasteiro, como pequenos soldados em missão clandestina. O calor pesava nos ombros, mas os risos abafados e os olhares cúmplices empurravam-nos adiante.
Chegámos ao rio em silêncio — o Rio Keve, sereno e largo, espelhando o céu num azul profundo. As margens estavam cobertas de capim alto, e havia um cheiro a água, terra húmida e liberdade.
O primeiro a atirar-se foi, claro, o Zé Luís. Correu, saltou, mergulhou com um grito de euforia que ainda hoje me ecoa nos ouvidos. Depois, um a um, fomos entrando — uns a nado, outros só com os pés na água. Eu fiquei parado por um momento, olhando para aquela vastidão líquida. Depois respirei fundo... e mergulhei.
A água era morna, viva, envolvente. O mundo desapareceu. Ali, fomos livres. Sem régua. Sem horários. Sem medo.
Rimos, nadámos, atirámos lama uns aos outros. O Saul improvisou uma canção absurda sobre piranhas e sereias. O Joaquim encontrou um peixe morto e gritou como se fosse um tesouro. E o Humberto, por fim rendido, fez uma corrida dentro de água com os braços abertos como asas.
Ficámos ali até o sol começar a descer, pintando o céu de laranja e o rio de ouro. A roupa colada ao corpo, os pés cheios de areia, o coração cheio de algo que não sabíamos ainda nomear: aventura.
Voltámos em silêncio, secando ao vento, com o olhar de quem sabia que tinha quebrado uma regra... mas conquistado um pedaço do mundo.
O Professor Bento soube, claro. Sabia sempre. Chamou-nos um por um, não para nos punir, mas para nos lembrar:
— “A liberdade só vale se souberem voltar para casa.”
E voltámos. Diferentes. Crescidos. Molhados de rio e memória.

Capítulo 8
Mila, o Campeão e o Companheiro Improvável
Durante muito tempo, Mila — ou melhor, Henrique Baptista — era para nós um mito de corredor e rufia, conhecido tanto pelas suas proezas desportivas como pelas suas partidas de finalista. Alto, ágil, com cabelo negro até à nuca e um riso contagiante, era o tipo de rapaz que fazia um lançamento de bola com a mesma precisão com que fazia um comentário sarcástico.
Para os caloiros, Mila era quase intocável. O corte simbólico que me fez, no início do ano, ainda me ardia na memória. Mas o que ninguém esperava era que, por trás da irreverência, estivesse também alguém com capacidade de acolher, proteger e — imagine-se — ensinar.
Tudo começou num treino de andebol.
Eu estava encostado ao muro, a ver os grandes jogar, fascinado com a forma como Mila dominava o campo. Saltava, fintava, lançava com força e elegância. Era o orgulho da escola. O treinador gritava, mas a equipa respondia ao ritmo dele — era como se fosse maestro e instrumento ao mesmo tempo.
Num intervalo, ele passou por mim, atirou-me uma bola e disse:
— “Mostra aí como lanças, caloiro.”
Fiquei estático. Suado sem ter corrido. Peguei na bola com mãos trémulas e atirei — fraco, sem direcção. Ele apanhou com uma mão só, girou no ar e devolveu-me a bola com um sorriso.
— “Tens jeito... para carteiro. Mas vamos trabalhar nisso.”
E trabalhou. Sem zombarias. Sem humilhações.
Passou a chamar-me para os treinos informais depois das aulas. Mostrou-me como usar os pés, como ler o movimento dos outros, como lançar sem medo. Aos poucos, comecei a ganhar confiança. A marcar golos. A ouvir aplausos. E a ver em mim algo que até então desconhecia: capacidade.
Os outros caloiros começaram a reparar. E, estranhamente, os outros finalistas também. Mila, o campeão, estava a treinar um miúdo da turma dos pequenos. E não era gozação — era compromisso.
Lembro-me de um dia, já no fim do ano, em que tivemos um jogo interno entre turmas. Fui convocado. Entrei em campo nervoso, mas Mila piscou-me o olho e disse:
— “Hoje és tu quem lança.”
Recebi a bola, corri, lancei... e marquei. O pátio explodiu em gritos. E foi Mila o primeiro a levantar os braços, aplaudindo-me como se eu fosse finalista.
Nesse momento, percebi o que era verdadeira liderança. Não aquela que manda — mas a que eleva. A que vê no outro não o miúdo nervoso do banco, mas o futuro jogador da equipa.
Mila ensinou-me mais do que técnicas. Ensinou-me que respeito não se impõe — conquista-se. E que até os gigantes da escola podem, se quiserem, tornar-se irmãos de alma.

Capítulo 9
Chuvas Tropicais e Cadernos Molhados
Na Cela, a estação das chuvas não chegava de mansinho. Chegava com estrondo. Com trovões a estremecer os telhados de zinco e relâmpagos a rasgar o céu como nervos de luz. E nós, pequenos estudantes de fardas já húmidas pelo calor, sabíamos que bastava um minuto de distração para o céu virar rio.
As manhãs podiam começar secas, quentes, promissoras. Mas bastava o almoço passar para o vento mudar. As nuvens, carregadas e cinzentas, aproximavam-se como exércitos em marcha. E, de repente, tudo se transformava. A terra quente tornava-se lama. As folhas voavam. Os cadernos choravam tinta.
Lembro-me de um dia em que saímos da aula de matemática. O céu estava pesado, mas nada indicava urgência. Caminhávamos devagar, alguns a brincar, outros a rever os apontamentos enquanto se deslocavam para a aula seguinte. Eu segurava o meu caderno de caligrafia contra o peito — recém-corrigido pelo Professor Bento, com um “Muito bem” sublinhado a azul.
E então caiu a primeira gota.
Não uma gota tímida, mas uma daquelas grossas, quentes, que faz ploc ao bater no chão. Depois outra. E outra. Em segundos, o céu desabou sobre nós.
Corremos como formigas em debandada, rindo e gritando. Alguns procuraram abrigo debaixo do beiral do edifício principal. Outros, como o Zé Luís, dançaram de propósito no meio da água. O Saul começou a cantar como se estivesse num musical tropical:
— “Chuva de Cela, lava a escola... e leva os deveres com ela!”
A verdade é que levou mesmo. Muitos de nós ficámos com os cadernos encharcados, as folhas onduladas como pele de velho, a tinta azul a escorrer pelas margens como rios de desespero. Quando voltei a abrir o meu, a bela nota do Professor Bento já era um borrão indistinto.
Houve quem chorasse. Houve quem risse. Eu fiquei em silêncio, a olhar para aquele pedaço de papel agora disforme. E foi nesse momento que o Professor apareceu à porta, encharcado ele próprio, com um chapéu meio torto e a régua ao lado.
— “Não se preocupem,” disse com uma serenidade que só ele sabia usar. “Se a chuva levou as vossas palavras, escrevam-nas outra vez. E com mais alma.”
Nunca esqueci aquela frase. Porque ali aprendi que o que vale mesmo não é o que se perde — é o que somos capazes de refazer.
Nos dias seguintes, os cadernos secavam nos parapeitos das janelas, abertos como asas de borboleta, à espera do sol. E nós, como os cadernos, voltávamos a abrir-nos ao mundo — com manchas, sim, mas também com novas histórias para contar.

Capítulo 10
Quando a Guerra Sussurrava pelas Janelas
Até ali, o mundo era escola, casa, recreio, e rio. Os nossos dias giravam entre cadernos molhados, bolas de trapos e sonhos inocentes. Mas, pouco a pouco, como vento que se insinua pelas frinchas de uma janela mal fechada, a guerra começou a sussurrar.
Não chegou de repente — nem com tanques, nem com tiros. Chegou em conversas cortadas, em olhares desviados, em ausências silenciosas. Chegou na forma de pais que deixavam de rir, de irmãos mais velhos que já não apareciam à mesa, de cartazes colados nos postes da vila com rostos desconhecidos e palavras grandes como “mobilização”, “revolução”, “independência”.
Na escola, os professores tentavam manter o ritmo. Mas até o Professor Bento andava mais calado. Dava-nos os exercícios, corrigia com atenção, mas ficava longos minutos à janela, a olhar para longe, como se visse algo que nós ainda não sabíamos nomear.
Lembro-me de um dia, numa manhã pesada, em que um helicóptero passou baixo sobre a Cela. O barulho sacudiu as janelas. Alguns colegas gritaram, outros correram para fora da sala. Eu olhei para o chão. Senti medo — não o medo de uma palmada ou de uma prova mal feita — mas o medo que entra sem bater.
Nessa semana, começaram a faltar colegas. Primeiro o Pedro, depois o José Esteves. Diziam que as famílias estavam a “ir para o mato” ou que tinham sido “chamadas de volta a Portugal”. Alguns de nós não entendíamos. Outros fingiam não entender. Mas sabíamos. Algo estava a mudar.
Até o recreio mudou. As gargalhadas eram mais baixas. A bola de trapos jogava-se com menos entusiasmo. A sombra da mangueira parecia mais curta. Até a chuva parecia cair com menos inocência.
Um dia, a Dona Madalena — a funcionária da escola que limpava as salas e distribuía o leite — aproximou-se de mim e disse:
— “Não deixes de estudar, meu filho. Tudo o que tens na cabeça, ninguém te tira. Nem a guerra.”
Essas palavras ficaram comigo. Tal como o olhar do meu pai, naquela mesma semana, quando chegou a casa mais cedo e me disse, com a voz embargada:
— “Estamos a preparar-nos para partir.”
Foi assim que a infância começou a despedir-se, não com lágrimas declaradas, mas com pequenos silêncios. O silêncio dos amigos que deixaram de vir à escola. O silêncio de um recreio mais curto. O silêncio dentro do peito.
E, no meio disso tudo, continuávamos a copiar frases do quadro, a fazer ditados, a pintar mapas de África — como quem tenta fixar o mundo antes que ele se desfaça.

Capítulo 11
O Último Dia de Escola — O Fecho de um Ciclo
O último dia de escola não chega como um trovão. Chega como um sussurro doce e melancólico, como quem se despede sem querer chamar a atenção. Mas nós sabíamos. Todos sabíamos.
Era manhã clara na Cela. A escola cheirava a chão varrido, a tinta seca nos mapas, e a papel amarelado pelos dias. Os corredores estavam mais silenciosos do que o costume — não por tristeza explícita, mas por uma calma solene, como num ritual sagrado.
Eu sentia o peso da farda nos ombros. Sabia que era a última vez que a usava. A última vez que entrava naquela sala com os meus amigos, com o Professor Bento à frente, com as cadeiras de madeira a ranger, com o quadro negro a chamar pela última lição.
O Professor entrou com passos lentos. Não trazia a régua. Nem livros. Apenas o seu olhar tranquilo e um envelope na mão.
— “Hoje não há lição,” disse, pousando o envelope sobre a secretária. “Hoje cada um escreve a sua última página.”
E assim foi. Sentámo-nos, abrimos os cadernos, e ficámos ali — uns a escrever palavras de despedida, outros a desenhar, outros apenas a olhar para o vazio. Cada um à sua maneira, dizia adeus.
O Saul tentou animar-nos, como sempre, fazendo imitações do Bento a sorrir (pela primeira vez, não foi repreendido). O Joaquim ofereceu a cada colega um pequeno papel com um poema escrito à mão. O Zé Luís deu abraços a todos, fortes, como quem queria guardar a força dos amigos dentro do peito.
O Pedro entregou-me um botão — “para te lembrares do casaco que nunca levei” — e riu. Eu não disse nada. Apenas sorri e guardei-o.
O Professor Bento, no fim, levantou-se e disse:
— “Nunca deixem que o mundo vos roube a vontade de aprender. Mesmo quando tudo parecer desabar, a vossa história vale a pena ser contada.”
E então, ficámos de pé. Um por um, fomos até ele. Um aperto de mão, um olhar, uma despedida silenciosa.
Lá fora, o sol de Cela continuava a brilhar como sempre. Os jacarandás lançavam flores roxas sobre o chão, como se quisessem cobrir os nossos passos com beleza.
Saímos da escola devagar. Eu olhei para trás uma última vez. O edifício, gasto mas digno, parecia um velho amigo a acenar. Respirei fundo. Sabia que algo dentro de mim mudara para sempre.
Não voltaria a ser o mesmo Miro.
Mas para sempre guardaria ali — naquela escola, naquela terra, naquela infância — as raízes do que me tornei.

Epílogo
Angola no Coração, Sempre!
Parti de Angola com a inocência ferida e a mala cheia de silêncios. Não sabia, à data, que estava a deixar para trás não apenas a minha escola, os meus amigos, os cheiros, as vozes e as chuvas... Mas também um pedaço de mim que nunca mais deixaria de chamar por ela.
Durante anos, tentei explicar a outros o que era Cela, o que era a Escola Industrial e Comercial Narciso do Espírito Santo, o que era ser um miúdo com cadernos molhados e sonhos empoeirados pelo calor tropical. Mas as palavras falhavam. Não porque faltasse vocabulário — mas porque faltava mundo que compreendesse a alma angolana.
Angola não é só um lugar no mapa. É um lugar no peito. É a terra onde aprendi a correr, a partilhar, a errar, a escrever, a rir e a respeitar. Onde conheci a beleza do simples, a força do silêncio, e a eternidade dos afectos que se formam ainda antes de sabermos o que é destino.
Hoje, tantos anos depois, ao escrever estas páginas, vejo que nada foi em vão. Que cada corte de cabelo, cada bola de trapos, cada chuva súbita e cada sussurro de guerra plantou em mim sementes que floresceram em resiliência, em ternura, em palavra escrita.
Os nomes dos meus amigos — Humberto, Joaquim, Pedro, Saul, José, Zé Luís — não vivem apenas nos registos da escola. Vivem em mim. São parte da minha biografia emocional. E ao nomear cada um, sinto que os trago de volta à roda, debaixo da mangueira, com pão partilhado e cadernos abertos.
O Professor Bento? Vive também. No rigor com que escrevo. Na forma como escuto. Na consciência de que, por mais que o mundo mude, o saber continua a ser o bem mais precioso que se pode levar de um lugar.
Hoje, sou homem. Sou avô. Sou engenheiro. Sou escritor.
Mas antes de tudo isso, fui menino da Cela, Angola.
E esse menino ainda me visita — nos sonhos, nos cheiros, nas tardes em que o vento sopra diferente.
Este livro não é um regresso. É um reconhecimento.
Não é um adeus. É um abraço prolongado à terra que me formou.
Porque mesmo longe, mesmo noutras línguas e paisagens…Angola está — e estará — no meu coração. Sempre!

Agradecimentos
A escrita deste livro nasceu de memórias que resistiram ao tempo, mas só se tornou realidade graças ao amor, apoio e inspiração de muitas pessoas que, de uma forma ou de outra, caminharam comigo — seja nos dias de infância em Cela, seja nos longos anos que se seguiram.
Agradeço, antes de tudo, à minha família, pilar constante da minha vida. À minha esposa, Judy, pelo amor inabalável, pela paciência infinita e por me recordar diariamente o valor da ternura e da persistência. Aos meus filhos, pelo orgulho que sinto em vê-los crescer como homens de valor. E ao meu neto, Mason, que representa o futuro com os olhos do passado.
Aos meus pais, que me ensinaram que o conhecimento é a única herança que ninguém nos pode tirar, e que a dignidade se cultiva com verdade e exemplo.
Aos meus irmãos da infância — Humberto, Joaquim, Pedro, Saul, José e Zé Luís —, companheiros de aventuras e de silêncio, com quem partilhei não só o recreio, mas o coração. Que este livro vos abrace como o pátio da escola nos abraçava a todos.
Ao Professor Manuel Bento, cuja presença firme e justa me ensinou que as palavras têm peso, e que o saber só vale se for partilhado com sentido e respeito.
Agradeço também a Angola, minha pátria da alma, pela terra que me formou, pelas chuvas que me moldaram, pelo sol que me aqueceu e pelas memórias que me habitam até hoje.
E por fim, um agradecimento especial àqueles que incentivaram este projeto — direta ou indiretamente — incluindo os que me ajudaram a organizar, relembrar, escrever, ilustrar e sonhar.
Este livro é uma homenagem a um tempo que passou, mas que continua vivo em mim.É para todos vós.
Com gratidão profunda,
João Elmiro da Rocha Chaves
Sobre o Autor
João Elmiro da Rocha Chaves, conhecido desde a infância como Miro, nasceu em Angola numa época de contrastes — entre horizontes promissores e murmúrios de mudança. Cresceu em Santa Comba, Cela, onde viveu os seus anos formativos rodeado de amigos que marcaram para sempre o seu carácter e a sua visão do mundo.
Testemunha dos últimos suspiros da Angola colonial e dos primeiros sussurros da sua independência, Miro partiu do país ainda criança, levando consigo memórias gravadas a fogo — da escola, da família, da terra vermelha, das chuvas tropicais e da bola de trapos no recreio.
Radicado nos Estados Unidos, construiu uma carreira notável como engenheiro eletrónico, tendo servido na Marinha dos EUA a bordo do porta-aviões USS John F. Kennedy, e mais tarde contribuído para o desenvolvimento tecnológico na Micron Technology, onde deixou um legado de inovação, liderança e integridade.
Ao longo da vida, nunca deixou de escrever. Apaixonado pela língua portuguesa, e com alma poética herdada de Camões, cultivou a escrita como forma de resgatar a infância e homenagear as suas raízes. Este livro é o reflexo disso mesmo: um regresso ao menino de Cela — não para o prender ao passado, mas para lhe dar voz no presente.
Pai, avô, esposo, engenheiro, veterano, poeta e contador de histórias, João Elmiro da Rocha Chaves acredita que a memória é o que nos mantém inteiros. E que escrever é a melhor forma de voltar sem nunca ter saído.