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Caminhos da Junça e Muralhas: O Legado Familiar nas Terras Lusitanas da Beselga, Guilheiro e Penedono

jan 25

16 min de leitura

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A herança lusitana corre vigorosamente nas minhas veias, ligando-me às terras de Beselga, Guilheiro e Penedono, onde os meus avós, José Salvador Chaves — o estimado “Tio Zé Sapateiro” — e Elvira Paixão estabeleceram as bases da nossa família. Para mim, que carrego uma história marcada pela saída de Angola em 1975, às vésperas da sua independência, e pela subsequente assimilação cultural nos Estados Unidos, estas localidades não são meros pontos no mapa, mas sim marcos fundamentais de uma identidade multifacetada.


Na Beselga, para além da arte de trançar a junça, encontramos uma ponte erguida pelos romanos, situada no fundo da vila e que conduz aos terrenos do meu avô, os conhecidos “lameirões”. Esta construção milenar subsiste como prova de que, desde épocas remotas, a paisagem local foi tocada por diferentes civilizações e culturas, deixando a sua marca nas pedras que atravessam o curso de água. Tal como a ponte une as margens de um mesmo rio, as minhas vivências unem a herança europeia às memórias africanas, num diálogo permanente que molda quem sou hoje.


Seguindo adiante, o olhar recai sobre Guilheiro, no município de Trancoso, onde a arquitetura secular e a harmonia entre o homem e a terra testemunham séculos de persistência e renovação. Já em Penedono, o castelo medieval ergue-se altivo, lembrando as batalhas que definiram o território e celebrando a bravura lusitana, nutrida por gerações que nunca esmoreceram perante as adversidades históricas.


Nestas paragens, os meus avós desempenham um papel central:

  • José Salvador Chaves, o “Tio Zé Sapateiro”, trazia o ganha-pão para a família, mas sobretudo uma presença indispensável na comunidade, consertando calçados que atravessavam os campos pedregosos, as vilas vizinhas e os caminhos rurais.

  • Elvira Paixão, cujo nome evoca dedicação e carinho, sustentava o laço afetivo entre todos, mantendo vivas as tradições e as histórias que dão alma às nossas raízes.


Ao mesmo tempo em que honro este legado, a minha trajetória pessoal levou-me a aprofundar estudos na área de Engenharia Eletrónica, culminando numa carreira nos Estados Unidos — onde, paradoxalmente, dou continuidade à herança luso-angolana que me forjou, agora em contextos tecnológicos e multiculturais. A convergência dessas experiências reflete-se também na minha produção literária, que partilho em elmirochaves.com, onde convido o leitor a percorrer, em versos e sonetos ao estilo de Luís de Camões, a ponte simbólica que liga o passado ao presente.


Beselga, Guilheiro e Penedono traduzem-se, então, num círculo de memórias e valores que se expande para além da geografia, alcançando quem se identifica com a persistência do povo lusitano, com o amor pelas histórias contadas ao pé do lume, e com a eterna busca por manter vivas as essências familiares. No canto das ferramentas do sapateiro e no suave balançar das águas sob a ponte romana, encontro ecos do mesmo pulsar de vida que me anima: tradição e inovação, raiz e horizonte, numa dança contínua entre o ontem e o amanhã.


Beselga e a Arte da Junça

Beselga, uma pitoresca freguesia do concelho de Penedono, destaca-se não apenas pelo seu ambiente rural e pela hospitalidade das gentes locais, mas sobretudo pela sua antiga e preciosa tradição artesanal: a cestaria de junça. A junça é uma planta herbácea pertencente à família das ciperáceas, que brota naturalmente nas serranias e zonas húmidas da região. Após ser colhida cuidadosamente e deixada a secar ao sol, os artesãos transformam as hastes resistentes em objetos úteis e decorativos — ceiras, tapetes, cestos, chapéus e outros artefatos que carregam a marca do engenho e da criatividade locais.


Historicamente, a produção de artigos em junça era uma importante fonte de sustento para muitas famílias de Beselga, complementando as atividades agrícolas e pastorícias típicas da zona. O ciclo de trabalho ajustava-se aos ritmos da terra e das estações: enquanto a lavoura e o pastoreio ocupavam grande parte do ano, a entrelaçagem dos fios de junça ocorria nos períodos de menor atividade no campo, permitindo um rendimento adicional que ajudava a equilibrar as necessidades económicas da comunidade. Assim, durante gerações, os saberes do cultivo, corte e secagem da junça foram transmitidos de pais para filhos, fortalecendo o sentido de identidade coletiva.


Contudo, com a modernização e as vagas de migração para os grandes centros urbanos e para o estrangeiro, o número de artesãos especializados reduziu-se gradualmente. Muitos jovens optaram por outras oportunidades de trabalho, e o artesanato de junça perdeu parte de sua relevância no dia a dia da aldeia. Ainda assim, a tradição resistiu, graças à perseverança de alguns mestres artesãos e ao interesse crescente de visitantes e estudiosos empenhados em valorizar o património cultural de Portugal.


Reconhecendo a importância de preservar este ofício ancestral, em 2016, a Câmara Municipal de Penedono deu início ao processo de certificação da “Junça da Beselga - Penedono” no Registo Nacional de Produções Artesanais Tradicionais Certificadas. O principal objetivo desta iniciativa é garantir a autenticidade e a qualidade dos produtos fabricados com junça, legitimando o “saber fazer” local enquanto bem cultural de interesse público. Além disso, a certificação procura impulsionar o artesanato em junça para novos mercados, tornando-o mais visível aos olhos de turistas, colecionadores e entusiastas de ofícios tradicionais.


Esta nova etapa não apenas preserva a identidade cultural da comunidade, mas também abre caminho para a inovação nos produtos de junça, explorando novas formas, padrões e funcionalidades. Da mesma forma, promove-se o intercâmbio de experiências entre artesãos experientes e as gerações mais jovens, incentivando oficinas, formações e demonstrações que despertam a curiosidade de quem visita a freguesia. Em muitos casos, o interesse turístico tem contribuído para a revitalização do comércio local, gerando oportunidades de renda suplementar e, ao mesmo tempo, reforçando o orgulho dos habitantes de Beselga no seu património.


Dessa forma, a arte da junça em Beselga transcende o simples artesanato utilitário e converte-se num símbolo de resiliência, criatividade e união comunitária. Num mundo em constante mudança, este legado ancestral permanece vivo e dinâmico, honrando as raízes históricas da região e projetando novos horizontes para as próximas gerações.


Guilheiro e o Legado Familiar

Guilheiro, uma localidade pertencente ao município de Trancoso, destaca-se não apenas pela sua riqueza arquitetónica e paisagens verdejantes, mas também pelas histórias familiares que se entrelaçam com o próprio tecido cultural da região. Foi aqui que a maior parte da família do meu avô, José Salvador Chaves, encontrou morada, incluindo o seu único irmão, António Salvador Chaves, e outros membros do seu núcleo familiar e enteados. O ambiente acolhedor e a tranquilidade do campo fizeram deste lugar o palco de laços fraternos e vivências que atravessam gerações.


A nossa ligação a Guilheiro revela ainda um capítulo inusitado, proveniente da linha materna do meu avô: o meu bisavô, nascido e criado no Brasil, partiu para Guilheiro em busca de oportunidades quando ainda era jovem. Contudo, o destino quis que a sua vida fosse ceifada precocemente, sem que pudesse consolidar todos os sonhos que o haviam trazido até estas paragens. Com a morte do meu bisavô, a minha bisavó optou por voltar a casar, dando origem a uma família “mista”, formada pelos filhos do primeiro casamento e pelos do novo matrimónio — um traço marcante e genuinamente humano, que retrata os caminhos imprevisíveis da vida e a constante capacidade de adaptação e renovação das comunidades beirãs.


Por entre as encostas e vales de Guilheiro, cada pedaço de terra e cada construção ancestral carrega um pouco desta memória familiar — a perseverança de quem partiu do Brasil para se estabelecer numa terra distante, a resiliência dos que ficaram e a união de famílias reconstruídas em torno de valores como a solidariedade e a entreajuda. É neste mosaico de histórias que se consolida a identidade local, refletida não só na arquitetura que testemunhou várias gerações, mas também na paisagem natural que oferece sustento e inspiração aos habitantes.


Assim, Guilheiro surge como um lugar onde a tradição e a herança se fundem com narrativas de amor, luto e esperança. Seja para aqueles que apreciam a história e o património, seja para quem procura compreender melhor as suas próprias raízes, a aldeia converte-se num testemunho vivo de como as famílias se moldam e se fortalecem perante as mudanças e adversidades da vida — um legado emocional que acompanha cada nova geração e que ainda hoje me inspira na missão de contar e honrar a minha própria história.


Penedono: Castelo e Resistência Ancestral

Penedono, coroada pelo seu imponente castelo medieval, ergue-se como um baluarte da bravura e resiliência dos nossos antepassados. Situado a norte do distrito de Viseu, em pleno coração da Beira Alta, o concelho de Penedono conjuga vales e serras com um valioso património arquitetónico e histórico. A fortaleza que coroa esta paisagem, estrategicamente erguida sobre uma elevação rochosa, é o elemento mais icónico do lugar e simboliza toda a região.


Origem e Evolução do Castelo

A construção do castelo de Penedono remonta a períodos anteriores à própria fundação de Portugal — especula-se que algumas estruturas iniciais possam datar de épocas pré-romanas ou da fase de ocupação sueva e visigótica, evoluindo ao longo dos séculos com influências árabes e cristãs. Foi durante a Idade Média, particularmente nos reinados de D. Sancho I e D. Dinis, que a fortaleza ganhou a feição robusta e defensiva que hoje conhecemos, recebendo torres, muralhas e um reforço no adarve para resistir aos constantes conflitos e cercos que ocorriam nas fronteiras do jovem reino.


O “Magriço” e as Lendas do Castelo

Além da sua imponência arquitetónica, Penedono está envolta em lendas e histórias que reforçam o seu caráter lendário. Uma das figuras mais destacadas é Álvaro Gonçalves Coutinho, o “Magriço”, um dos cavaleiros conhecidos como os “Doze de Inglaterra”, que se tornaram famosos na literatura portuguesa por sua coragem e feitos heroicos. Reza a tradição que o “Magriço” terá nascido ou sido fortemente ligado a estas terras, e seu espírito cavalheiresco povoa a memória popular local até aos dias de hoje. A lenda funde-se à paisagem, conferindo ao castelo de Penedono um ar romanesco, onde o passado épico parece ecoar pelos torreões.


Ponto Turístico e Emblema Comunitário

Na contemporaneidade, o castelo de Penedono é um importante ponto turístico, atraindo visitantes de todo o país e do estrangeiro, interessados não só na beleza cénica e panorâmica, mas também no valor histórico e cultural que a fortaleza representa. As muralhas, os vestígios arqueológicos e a própria localização do castelo permitem uma verdadeira viagem no tempo, convidando quem o visita a imaginar o pulsar de batalhas medievais, torneios de cavalaria e as disputas territoriais que marcaram a consolidação do Reino de Portugal.


Para além disso, o castelo é um símbolo de identidade para os habitantes locais, que se reconhecem na força e na capacidade de superação exemplificadas pelas pedras ancestrais que resistiram a invasões e às inclemências dos séculos. A robustez da construção inspira o sentimento de pertença e o orgulho comunitário, espelhando o espírito de uma região que, ao longo do tempo, enfrentou desafios diversos — desde guerras e crises económicas até à emigração para o estrangeiro. Mesmo assim, Penedono permanece fiel às suas raízes, renovando-se sem perder a memória do seu passado heroico.


Eventos e Dinamização Cultural

Nos últimos anos, a Câmara Municipal de Penedono e diversas entidades culturais locais têm organizado eventos temáticos e recriações históricas no interior e no entorno do castelo, celebrando a herança medieval e reforçando o turismo histórico na região. Feiras medievais, exposições, espetáculos de música tradicional e festivais gastronómicos contribuem para a dinamização cultural, atraindo famílias, estudiosos de história e entusiastas da arquitetura militar medieval.


Legado de Resistência

Em síntese, o castelo de Penedono afirma-se como um emblema que transcende a mera relevância arquitetónica ou turística. Constitui, sobretudo, um testemunho vivo da capacidade do povo da Beira Alta de manter-se firme perante as transformações e provações ao longo dos séculos. Tanto como monumento, quanto como símbolo de memória coletiva, o castelo continua a refletir a união entre passado e presente — uma ponte intemporal que preserva o espírito de valentia, orgulho e coesão que define Penedono desde tempos imemoriais.


Laços com o Passado Lusitano

As terras de Beselga, Guilheiro e Penedono guardam uma ligação profunda com os Lusitanos, povo que ocupou grande parte da Península Ibérica muito antes da chegada dos romanos. Conhecidos pela sua coragem indomável e perícia em estratégias de combate, os Lusitanos resistiram ferozmente à invasão de Roma, tornando-se célebres pelas táticas de guerrilha empregues por líderes como Viriato, cujo nome se tornou sinónimo de astúcia militar e de um espírito de independência que ecoa até aos dias de hoje. A sua figura lendária aparece frequentemente na literatura e no imaginário português, reforçando o orgulho de uma herança cultural construída sobre a bravura e a capacidade de adaptação.


Um Legado que Atravessa Fronteiras

Para aqueles de nós que carregam a fusão de várias experiências históricas e culturais — como é o meu caso, tendo saído de Angola em 1975, pouco antes da independência, e estabelecendo-me nos Estados Unidos para prosseguir uma carreira em Engenharia Eletrónica — a herança lusitana representa um fio condutor que transcende o simples território. Na escrita que partilho em elmirochaves.com, procuro refletir sobre este “sangue lusitano” que, de forma simbólica, liga as raízes mais remotas de Portugal à diáspora e às vivências em contextos tão diversos como o africano e o norte-americano.


Sinto que esta conexão com o passado lusitano ressoa não só nas paisagens de serras e castelos medievais, mas também na resiliência e na vontade de superação do povo português — um povo moldado por séculos de confrontos, explorações marítimas e cruzamentos culturais. Assim como os Lusitanos lutaram pela sua liberdade, os portugueses, ao longo da História, foram-se reinventando, seja dentro das fronteiras de Portugal, seja nos múltiplos destinos onde chegaram a emigrar.


A Controvérsia do “Gene Português”

Nos últimos anos, surgiram debates sobre a possibilidade de um gene específico — A25-BIS-DR2 — associado diretamente aos descendentes dos Lusitanos. Alguns estudos preliminares chegaram a sugerir a existência de uma particularidade genética exclusiva, que diferenciaria os portugueses de outros povos mediterrânicos. Contudo, o investigador Paulo Rodrigues Santos, do Instituto de Imunologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, salienta que não existem provas científicas conclusivas sobre um “gene português” único. A complexidade da genética populacional, bem como o intenso fluxo migratório e a miscigenação ao longo de milénios, tornam as interpretações genéticas especialmente cautelosas.


É nesse contexto que a minha própria história pessoal — com raízes angolanas, portuguesas e vivências americanas — se entrelaça com a rica tapeçaria de cruzamentos que foi moldando a identidade lusitana ao longo do tempo. Somos fruto de encontros culturais, de trocas linguísticas e de adaptações constantes, elementos que também caracterizavam, de certo modo, o cenário na Península Ibérica nos tempos de Viriato, quando diferentes povos e culturas se deparavam e se influenciavam mutuamente.


Entre o Passado e o Futuro

Independentemente de existir ou não um gene que nos defina, o que permanece incontestável é a força simbólica desta herança lusitana. No meu percurso profissional, por exemplo, ao aplicar uma mentalidade analítica (típica de um engenheiro) e, simultaneamente, encantar-me pelo ato de compor sonetos ao estilo de Luís de Camões, mesclo estas duas esferas — a racionalidade científica e a sensibilidade poética — que também são reflexos de uma cultura luso-angolana e, por extensão, herdeira daquele espírito de persistência associado aos antigos Lusitanos.


Assim, a ligação ao passado lusitano não se restringe a monumentos ou castelos erigidos em defesa de antigas fronteiras; ela subsiste na forma como valorizamos as histórias dos antepassados, os seus exemplos de coragem, e as adaptamos aos desafios contemporâneos. É neste casamento entre memória ancestral e renovação constante que reside a riqueza da herança portuguesa, fazendo com que cada geração, onde quer que esteja, transporte consigo um pouco do legado que outrora ergueu muralhas e resistiu às legiões romanas.


Laços com o Passado Lusitano

A ligação destas terras aos Lusitanos vai além dos vestígios arqueológicos ou dos relatos épicos que povoam a memória coletiva. Situados no interior de Portugal, os concelhos de Beselga, Guilheiro e Penedono preservam, em cada recanto, sinais de um povo que se distinguiu pela resistência incansável contra a dominação estrangeira. As montanhas e vales que rodeiam a região forneceram aos Lusitanos o cenário ideal para porem em prática as famosas táticas de guerrilha, explorando o relevo acidentado e o profundo conhecimento do terreno para surpreenderem as legiões romanas. Sob a liderança de Viriato, um símbolo de engenho militar e de espírito insubmisso, os Lusitanos tornaram-se um exemplo vivo de como a coragem local podia desafiar um dos maiores impérios da Antiguidade.


No entanto, a influência deste povo não se restringiu à arte da guerra. A forte conexão com a terra e o estilo de vida comunitário, que até hoje se refletem em várias práticas rurais, herdaram traços da determinação e do engenho característicos dos primeiros habitantes ibéricos. Em certos lugares, a toponímia ou mesmo as tradições orais fazem eco de nomes e narrativas que remontam a épocas pré-romanas, enriquecendo a identidade cultural das localidades atuais. Assim, a herança lusitana não se resume ao campo militar, mas integra também elementos da organização social, das festividades e da relação simbiótica com o meio natural.


Nos últimos anos, a discussão acerca do hipotético gene A25-BIS-DR2 reacendeu o interesse por um possível marcador genético capaz de evidenciar a ligação direta com aqueles antepassados. Embora alguns investigadores tenham visto na hipótese um modo de destacar a singularidade do património genético português, outros, como o especialista Paulo Rodrigues Santos, enfatizam que a interpretação destes resultados deve ser encarada com cautela. A própria ciência moderna reconhece a complexidade da genética populacional, sobretudo num território onde convergiram povos diversos ao longo de milénios. Em consequência, permanece o consenso de que a construção da identidade cultural e histórica é marcada por múltiplas influências, e não apenas pela existência de um único “gene português”. É precisamente nesta pluralidade de origens que reside o vigor de uma memória coletiva, transmitida ao longo das gerações e manifestada em costumes, lendas e laços familiares que continuam a alimentar o sentimento de pertença e continuidade lusitana.


Família, Ofícios e Valores

A profissão de sapateiro exercida pelo meu avô, José Salvador Chaves, transcendia a mera função de sustento familiar. Em comunidades rurais, onde o acesso a bens de consumo era limitado, o sapateiro desempenhava um papel essencial: consertar e prolongar a vida útil do calçado, algo crucial para quem vivia e trabalhava em solos pedregosos e distantes dos grandes centros urbanos. Na sua banca de trabalho, o “Tio Zé Sapateiro” — como era afetuosamente conhecido — ouvia relatos dos vizinhos, trocava conselhos sobre o uso de materiais mais resistentes e acolhia confidências que fortaleciam a sensação de solidariedade e entreajuda no seio da comunidade. Assim, cada sapato restaurado simbolizava também um vínculo renovado entre o artesão e quem dele dependia para caminhar com segurança pelas encostas e lameiros da região.


No entanto, o trabalho do meu avô não se resumia à sapataria: ele cuidava também dos grandes terrenos que possuía, onde cultivava batatas e cereais — usados para cozer o pão — e mantinha vinhas que produziam as uvas para o vinho caseiro. No seu quintal, havia um forno de dimensão generosa, partilhado com a comunidade, para onde vizinhos traziam a massa a fim de cozerem o pão que alimentava várias famílias.


Durante as fornadas, as pessoas trocavam conversas sobre o dia a dia da aldeia e combinavam esforços coletivos para as tarefas agrícolas. Além disso, um tanque com prensa completava esse cenário de vida rural, sendo utilizado para esmagar as uvas na época das vindimas. Assim, o vinho resultante abastecia os grandes eventos festivos e unia ainda mais os moradores em torno de tradições ancestrais.


Paralelamente, a minha avó, Elvira Paixão, constituía o coração afetivo da família. Oriunda da Beselga — pode-se dizer até que era indígena desta localidade, tão profundamente estavam as suas raízes entranhadas no lugar —, ela encarnava a continuidade de tradições e valores transmitidos ao longo de gerações. Na Beselga, tive oportunidade de visitar as ruínas das antigas paredes graníticas que outrora formaram o lar dos seus antepassados. Situadas a pouca distância do núcleo da aldeia, essas muralhas, embora desgastadas pela passagem do tempo, preservam um sopro de vida que evoca as rotinas de trabalho, as festas comunitárias e as histórias que cimentaram laços familiares.


A presença dessas paredes ancestrais, silenciosas mas resilientes, reflete a própria trajetória da minha avó: fiel às tradições, mas ao mesmo tempo capaz de se adaptar às transformações políticas e sociais que redefiniram o Portugal rural ao longo das décadas. Dessa forma, Elvira Paixão não foi apenas a figura materna que mantinha o quotidiano fluindo com harmonia; ela funcionava como uma espécie de arquivo vivo, preservando costumes, crenças e narrativas que desenham o mosaico da nossa identidade coletiva.


Enquanto o meu avô trabalhava para calçar os habitantes e cultivar os campos garantindo sustento a todos, a minha avó reforçava o sentido de pertença, fosse por meio de antigas receitas passadas de geração em geração, seja pela devoção às festividades religiosas que agregavam a comunidade em torno de valores comuns. Juntos, eles sustentavam o equilíbrio entre o labor essencial para a subsistência e a coesão afetiva que dá forma às memórias familiares — um equilíbrio que se perpetua na herança que deixaram, tanto para os descendentes como para a própria comunidade que os acolheu.


Legado e Memória

Explorar as minhas raízes na Beselga, Guilheiro e Penedono transcende a mera revisitação de um passado distante. Cada viagem a estas terras representa um reencontro constante com o património que teima em pulsar e renovar-se no presente. A resiliência emerge nos gestos diários dos habitantes — do artesão que, com paciência, entrelaça a junça para criar cestos tradicionais, às famílias que se mantêm fiéis às colheitas e à confeção de pão em fornos comunitários; a coragem revela-se nos vestígios de muralhas seculares e nos relatos de batalhas que outrora defenderam a dignidade destas localidades; e o espírito comunitário vive nos laços de vizinhança, no apoio mútuo que atravessa gerações e nos eventos festivos que reúnem pessoas em torno das memórias coletivas.


Em cada um destes lugares, sinto a história a respirar através das construções de granito, das vinhas que serpenteiam pelos terrenos acidentados e das lendas que dão vida às pedras milenares. As profissões tradicionais, como a de sapateiro do meu avô, que consolidaram a economia local noutras épocas, ainda evocam o valor do trabalho árduo e da necessidade de cada família em apoiar-se mutuamente. Ao mesmo tempo, as lendas e narrativas de valentia, personificadas por heróis locais ou pela figura icónica de Viriato no imaginário lusitano, recordam-nos que estas paragens sempre se nortearam pela determinação de proteger a sua identidade.


O mais extraordinário, porém, é que este legado se mantém vivo. Ele não se reduz a ruínas, castelos e tradições cristalizadas no tempo. Em vez disso, adapta-se e evolui, refletindo a forma como as sucessivas gerações escolhem honrar a herança dos seus antepassados. Na gastronomia local, no cuidado que se tem em restaurar velhos fornos e moinhos, na dedicação dos artesãos para reinventar a cestaria de junça, sente-se um misto de orgulho e renovação. Esta transmissão de saberes, de pais para filhos, constitui o verdadeiro elo que une passado, presente e futuro — um elo que se expande também para além das fronteiras de Portugal, tocando os que, como eu, partiram e construíram vivências noutros cantos do mundo, mas nunca deixaram de olhar para trás com admiração e gratidão.


Nesse sentido, revisitar estes lugares é também um gesto de reconhecimento, uma forma de agradecer às gerações anteriores pelos valores de união, coragem e hospitalidade que, mesmo em cenários de mudança, resistiram ao desgaste do tempo. A cada regresso, a descoberta de um pormenor esquecido — seja um recanto de ruínas familiares, um detalhe na cestaria de junça ou um relato até então desconhecido — reforça a convicção de que o sangue lusitano, com toda a sua força simbólica, continua a nutrir os meus passos. É como uma chama que atravessa os séculos, acesa pela vontade de honrar quem nos antecedeu e de perpetuar as histórias que fazem de nós aquilo que somos hoje.


Soneto “Sangue Lusitano”


Em velhas pedras sinto o som do hino,

A voz que o tempo tece no presente;

No sopro antigo surge o amor ardente,

E do labor nasce o calor divino.


Guilheiro e Beselga guardam o destino,

Da herança firme em solo resistente;

Penedono ergue o castelo imponente,

E em cada mão se forja um novo sino.


Junça que tece histórias ancestrais,

Sapateiro incansável em seu brio,

Sinais de um povo antigo em plena luz.


Avó que embala sonhos imortais,

E avô que molda o passo rumo ao fio

Do velho canto que persiste e seduz.


A Ponte Entre Raízes e Horizontes


Nas pedras firmes corre o sangue antigo,

Ecos da serra, vinhas e lameiros;

Na Beselga, o labor dos jornaleiros,

Unem-se histórias num destino amigo.


Castelo altivo em Penedono, abrigo,

De heróis, memórias, feitos verdadeiros;

No Guilheiro, campos verdes inteiros,

Guardam memórias, tradições de trigo.


Junça que tece a alma em cada fio,

Mãos que preservam séculos de vida,

São nosso norte, nosso desafio.


Raízes firmes, mas visão erguida,

Entre passado e sonho está o caminho,

Legado eterno, nunca andar sozinho.


Fontes Consultadas e Recomendações de Leitura

  1. Câmara Municipal de Penedono.- Iniciativa de Certificação da “Junça da Beselga - Penedono” e valorização do artesanato local.Disponível em: https://cm-penedono.pt/

  2. Município de Trancoso.- Património histórico e cultural, informações sobre Guilheiro e região envolvente.Disponível em: https://www.cm-trancoso.pt/

  3. Universidade de Coimbra, Faculdade de Medicina.- Pesquisas e publicações sobre genética populacional e estudos de imunologia.Disponível em: https://www.uc.pt/fmuc

  4. Biblioteca Nacional de Portugal.- Obras sobre a história dos Lusitanos e a resistência durante a invasão romana, incluindo menções a Viriato.Disponível em: https://www.bnportugal.gov.pt/

  5. IPPAR / Direção-Geral do Património Cultural.- Documentação e inventário do património edificado, incluindo o Castelo de Penedono.Disponível em: https://www.patrimoniocultural.gov.pt/


Por João Elmiro da Rocha Chaves

O “Mirito”, como meu avô me chamava.




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