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Entre Memórias e Desafios: Uma Nova Perspetiva sobre Minhas Raízes

mar 30

7 min de leitura

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Raízes em Santa Comba: Infância no Coração de Angola Colonial

Nasci em 1959, no hospital da Cela em Kissanga Kungo, e cresci em Santa Comba – hoje denominada Waku Kungo – no coração da província do Kwanza Sul, Angola​. No final da década de 1950, Santa Comba era um pequeno mundo à parte: um assentamento colonial onde colonos portugueses e angolanos locais conviviam sob o mesmo céu tropical.

A localidade nascera como parte do Colonato da Cela, um ambicioso projeto agropecuário lançado em 1952 para atrair centenas de famílias portuguesas ao fértil planalto do Amboim​ pt.wikipedia.org. Não por acaso, deram à vila central o nome de Santa Comba, em homenagem à vila portuguesa de Santa Comba Dão – terra natal do então ditador António de Oliveira Salazar​ pt.wikipedia.org. Nesse canto de Angola erguia-se até uma igreja matriz desenhada pelo arquiteto Fernando Batalha, réplica fiel da igreja de Santa Comba Dão​ verangola.net, sublinhando o peso simbólico que a metrópole imprimia naquela terra.


Para mim, porém, Santa Comba significava sobretudo lar e infância. Foram anos de inocência vividos entre a paisagem do mato e as tradições familiares, embalados pelo ritmo calmo da vida no interior colonial. Angola atravessava então uma época de profundas transformações socioeconómicas, em que o desenvolvimento do sistema de ensino local se fazia notar​ elmirochaves.com.


A modernização trazia esperança, mas também se sentia no ar uma inquietação latente: à medida que a década de 1960 avançava, as contradições do regime colonial tornavam-se cada vez mais gritantes. Em 1961 deflagrou a luta armada pela independência, e o país entrou em convulsão. A Guerra Fria adicionou combustível a este fogo – as superpotências envolveram-se no conflito angolano, utilizando o país como um verdadeiro tabuleiro de xadrez para expandir as suas áreas de influência​

elmirochaves.com. Aquilo que até então era o meu pequeno mundo seguro em Santa Comba começava a ser abalado por forças muito maiores, prenunciando mudanças drásticas.


A Tempestade da Independência: Guerra Fria e Ruptura

Os anos imediatamente anteriores à independência foram particularmente conturbados. A partir de 1974-1975, Angola tornou-se palco de confrontos entre movimentos de libertação rivais, cada qual apoiado por aliados estrangeiros em plena Guerra Fria. Em agosto de 1975 – antes mesmo da proclamação oficial da independência – a guerra civil já grassava no país, forçando famílias como a minha a abandonarem tudo da noite para o dia. Lembro-me vivamente do caos e do medo: tiros ao longe, malas feitas à pressa, lágrimas e despedidas apressadas.


No dia 6 de agosto de 1975, Santa Comba colapsou. Pressionada pelos combates entre UNITA, FNLA e MPLA, a população de origem portuguesa da vila foi forçada a fugir às pressas​ pt.wikipedia.org. A maioria dos moradores foi resgatada pela Cruz Vermelha Internacional e transportada de avião para Portugal​ pt.wikipedia.org

 – a minha família estava entre eles.


Deixávamos para trás a terra natal, sem saber se algum dia a veríamos de novo. Anos mais tarde, transformei a memória dessa fuga em poesia, como que para purgar a dor: “Chegamos a Huambo com esperanças, a Cruz Vermelha nos deu novas asas, e para Portugal voamos…”elmirochaves.com. Cada verso carrega a angústia do exílio e a saudade imediata de Angola. Eu, então com 16 anos e meio, via-me de repente desenraizado, arrancado do solo que moldara a minha identidade até ali. Portugal seria apenas uma etapa breve; o destino final da nossa busca por segurança ficava ainda mais longe.


Exílio e Aculturação: Desafios no Novo Mundo

Atravessado o mar, abriram-se diante de mim as avenidas estranhas de outro continente. Nos anos finais da década de 1970, emigrámos para os Estados Unidos, iniciando vida nova em solo americano. A travessia física foi apenas o primeiro obstáculo; o verdadeiro embate veio ao aterrar num mundo completamente distinto do meu.

De um dia para o outro, precisei aprender uma nova língua, decifrar costumes alheios e encontrar meu lugar numa sociedade que mal conhecia. O choque cultural foi intenso: a comida não tinha os temperos da minha terra, o céu não era aquele azul familiar do planalto angolano, e o idioma inglês soava-me distante, incapaz de traduzir a plenitude do que eu sentia.

Experimentei na pele a solidão do migrante – aquela sensação de ser estrangeiro em toda a parte, de pertencer simultaneamente a lugar nenhum e a lugar algum.


Ainda assim, foi também em terras americanas que reencontrei a esperança. Acolhido por comunidades de língua portuguesa e por colegas generosos, consegui retomar os estudos e, gradualmente, reconstruir minha trajetória. Cada pequeno triunfo – desde terminar a faculdade até conseguir o primeiro emprego como engenheiro – era uma vitória sobre os desafios do exílio.


Eu repetia a mim mesmo que precisava manter o equilíbrio, com um olhar no futuro mas os pés firmes nas minhas raízes, mesmo que essas raízes estivessem a um oceano de distância. Por isso, nunca deixei de cultivar minhas referências de origem: falava português em casa, cozinhava pratos angolanos quando podia, e partilhava com os filhos as histórias de Santa Comba e da nossa família. Essa ponte invisível entre o ontem e o amanhã foi o que me sustentou nos momentos mais difíceis, dando-me forças para não esquecer quem eu era apesar de estar num novo mundo.


Poesia e Identidade: A Voz de Camões no Exílio

Nesse processo de reconstrução longe da terra natal, a poesia tornou-se minha aliada e minha terapia. Desde 1975, passei a derramar no papel as emoções que não cabiam no peito – mágoas, saudades, esperanças e sonhos adiados de um jovem forçado a crescer depressa. Os meus primeiros textos literários surgiram precisamente como uma forma de lidar com o impacto de deixar Angola em 1975, um momento crucial que marcou o início de uma nova vida​ elmirochaves.com.

Era escrevendo que eu conseguia revisitar memórias e dar sentido ao turbilhão de sentimentos de um refugiado adolescente. A cada poema, eu voltava a Santa Comba em pensamento: ora revendo a imagem do Hospital da Cela, onde tudo começara, ora conversando com as sombras dos que lá ficaram.


Escrever ajudou-me a manter viva a ligação com Angola e com a língua portuguesa. Apaixonado pela nossa literatura desde a escola, busquei inspiração nos clássicos para moldar a minha voz poética. A influência de Luís de Camões, em especial, tornou-se uma fonte constante de inspiração na minha escrita​ elmirochaves.com. Passei a compor sonetos de estilo camoniano, adotando o mesmo rigor estético que Camões empregava – tanto na forma dos versos quanto no compromisso com a excelência literária –, numa homenagem explícita a essa grande figura da nossa cultura​ elmirochaves.com. Em cada verso que crio, ecoa um pouco da grandiosidade de Camões e da alma lusitana, fundindo-se com as vivências africanas que carrego comigo. A poesia tornou-se, assim, não apenas um refúgio emocional, mas também o espelho da minha identidade mestiça de culturas.


Hoje, ao revisitar as minhas raízes, percebo que estou sempre a navegar entre memórias e desafios – tal como o título desta jornada sugere. Da pequena Santa Comba ao vasto mundo, a minha trajetória foi marcada pela dor da partida, pela coragem da adaptação e pela constante procura de sentido. Entre lembranças de um passado que ainda me chama e os desafios de um futuro que construí com esforço, descobri uma nova perspetiva sobre quem eu sou. E é neste equilíbrio delicado entre passado e futuro que encontro força para contar a minha história, com sensibilidade e verdade, esperando cativar o leitor a embarcar comigo nesta viagem de reencontro com as origens.



Entre Dois Mundos: O Equilíbrio entre Passado e Futuro

Hoje, ao revisitar as minhas raízes, percebo que estou sempre a navegar entre memórias e desafios – tal como o título desta jornada sugere. Da pequena Santa Comba ao vasto mundo, a minha trajetória foi marcada pela dor da partida, pela coragem da adaptação e pela constante procura de sentido. Entre lembranças de um passado que ainda me chama e os desafios de um futuro que construí com esforço, descobri uma nova perspectiva sobre quem eu sou. É neste equilíbrio delicado entre passado e futuro que encontro força para contar a minha história, com sensibilidade e verdade, esperando cativar o leitor a embarcar comigo nesta viagem de reencontro com as origens.


Este reencontro não é apenas pessoal; é uma celebração coletiva da história e cultura de Santa Comba – atual Waku Kungo – e de toda uma geração de angolanos que viveram tempos de profundas mudanças e incertezas. Minhas palavras pretendem homenagear aqueles que, como eu, tiveram de deixar para trás a segurança do conhecido, enfrentando o exílio e reinventando-se constantemente em novas terras.


Ao longo destas páginas, convido o leitor a refletir sobre o impacto duradouro da Guerra Fria nas vidas individuais, as feridas profundas causadas pela descolonização apressada, e a capacidade humana extraordinária de superar adversidades através da expressão artística e do cultivo das tradições. Santa Comba não é apenas um ponto de partida geográfico na minha narrativa; ela simboliza uma comunidade cujas histórias merecem ser contadas e preservadas, sobretudo num mundo cada vez mais globalizado e sujeito à erosão cultural.


A poesia, que surgiu em minha vida inicialmente como um escape emocional, tornou-se progressivamente uma ferramenta essencial para expressar minha identidade híbrida. Através dela, pude explorar e comunicar sentimentos complexos de perda, saudade e esperança, compondo um mosaico emocional em constante expansão. Cada poema ou texto que produzo carrega consigo um fragmento da minha alma luso-angolana, profundamente marcada pelas vivências em Santa Comba e pelas experiências nos Estados Unidos.


Por fim, este capítulo não marca apenas o encerramento de um relato autobiográfico, mas o início de uma conversa mais ampla sobre a importância de preservar identidades culturais únicas em tempos de mudanças aceleradas. Desejo inspirar o leitor a olhar para dentro de si mesmo, reconhecer a riqueza das suas próprias raízes e compreender que é precisamente na valorização do passado que podemos construir um futuro mais consciente, inclusivo e humano.


Fontes: ElmiroChaves.com (experiências pessoais, poesia e contexto histórico-cultural), Wikipédia (informações históricas sobre Santa Comba/Waku Kungo e Angola colonial), VerAngola (referências culturais locais).​



Soneto Final: Entre Dois Mundos


Entre mundos distantes vou vivendo,

Raízes em Angola tão amada;

Exílio, dor da terra abandonada,

Num mar de emoções vou me refazendo.


Santa Comba na alma vou trazendo,

Waku Kungo, memória preservada;

Minha história, em verso retratada,

Em duas pátrias sigo me movendo.


Na poesia achei nova verdade,

Que a saudade traduz em cada verso,

E me ajuda a enfrentar a tempestade.


Neste encontro sutil e tão diverso,

Passado e futuro em unidade,

Sou Angola e o mundo no universo.


MIRO



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