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História de Santa Comba (Waku-Kungo) em Angola: Uma Jornada de Resiliência, Desenvolvimento e Esperança

há 6 dias

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Santa Comba, hoje chamada Waku-Kungo, situada no coração do município de Cela, na província do Cuanza Sul, Angola, é um lugar repleto de histórias de coragem, trabalho árduo e resiliência. Desde o início da década de 1950, as famílias portuguesas que aqui chegaram transformaram este território, antes selvagem e inóspito, em uma próspera comunidade agrícola e industrial. Esta é uma terra onde o espírito de comunidade se manifestou de maneira única, e onde as contribuições de seus habitantes deixaram marcas profundas.


As Primeiras Famílias Portuguesas: Um Sonho de Novo Começo

Em 1949, um grupo de 31 pioneiros portugueses, incluindo meu pai, João de Deus Chaves, e meu tio João Salvador, chegou à região de Santa Comba com a missão de desbravar o terreno e construir as primeiras aldeias. Esses homens que enfrentaram enormes desafios, dedicaram-se a limpar a terra e lançar as bases da futura comunidade planeada para o Colonato da Cela.


Foi apenas em 1952 que as condições começaram a melhorar para os novos colonos. Nesse ano, meu avô, João da Rocha Machado Salvador, chegou à região, seguido em janeiro de 1953 pelo meu tio Marcelino, então com 13 anos, que veio acompanhado por 16 famílias do Alentejo e 10 de Trás-os-Montes. Quando chegaram, a Aldeia Três já estava concluída, com 26 casas prontas e terras devidamente preparadas para o cultivo. Ao contrário dos primeiros pioneiros, essas famílias encontraram moradias adequadas e infraestrutura básica, incluindo água disponível em cisternas (shafaris) em cada aldeia.


Enquanto os primeiros pioneiros tiveram de enfrentar as condições mais severas, com pouca ou nenhuma infraestrutura, os que chegaram a partir de 1952 encontraram uma situação muito mais favorável. As aldeias já possuíam casas de alvenaria e poços comunitários, e a terra havia sido parcialmente desmatada, facilitando a adaptação e o desenvolvimento. Esse avanço nas condições permitiu que os recém-chegados construíssem suas vidas com mais conforto, o que contribuiu para o crescimento da comunidade.


A paisagem original de Santa Comba, com suas florestas densas e savanas extensas, era praticamente intocada. Não havia estradas pavimentadas, energia elétrica ou outros serviços básicos, e as primeiras construções foram simples casas de barro ou pau-a-pique. No entanto, com o esforço coletivo e a determinação dos pioneiros, a região começou a se transformar. Em pouco tempo, comércios como a nossa loja, no centro de Santa Comba, tornaram-se pontos de encontro importantes, oferecendo provisões e conectando a crescente comunidade, contribuindo assim para o desenvolvimento local.


Desenvolvimento da Comunidade: Infraestrutura e Agricultura

À medida que as famílias se estabeleciam, logo perceberam que precisavam construir uma infraestrutura sólida para sustentar o crescimento da região. O primeiro grande avanço veio em 1952, com a criação de uma cerâmica local, que permitiu a produção de tijolos e, consequentemente, a construção de moradias mais permanentes e seguras. As ruas de Santa Comba começaram a ser traçadas e o pequeno núcleo habitacional se expandiu para formar o Bairro Santo António, um símbolo do progresso e do desejo de construir um futuro melhor.


Esse desenvolvimento não seria possível sem o esforço conjunto das famílias portuguesas. O meu pai, João de Deus Chaves, desempenhou um papel fundamental na transformação das paisagens naturais de Santa Comba em terras agrícolas produtivas. Operando bulldozers e escavadoras, ele participou ativamente do desmatamento e do preparo do solo, permitindo o surgimento das primeiras fazendas de gado e plantações. O meu tio João, tratorista de profissão, auxiliou no preparo das terras férteis que impulsionaram a produção agrícola.


Além disso, as interações com as comunidades locais foram cruciais para esse sucesso. O intercâmbio de conhecimentos sobre técnicas agrícolas e pecuárias trouxe inovação, permitindo que Santa Comba se tornasse um importante polo agrícola, especialmente no que diz respeito à produção de leite e derivados. O conceito de Colonato, embora não mencionado, pode ser visto como uma forma de organização produtiva e sustentável, que atraiu cada vez mais famílias para a região.


A Empresa de Laticínios de Angola (ELA) e a Consolidação da Pecuária

A Empresa de Laticínios de Angola (ELA) desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento econômico e social de Santa Comba e suas imediações, sendo um marco da consolidação da pecuária leiteira na região. Fundada no início dos anos 1950, a ELA impulsionou significativamente a produção de leite e derivados, não apenas para o consumo interno, mas também para exportação, tornando-se uma das principais fornecedoras de leite pasteurizado, queijo e manteiga, que alcançavam diversas províncias de Angola e até mercados internacionais. A fábrica era o coração da economia local, gerando empregos e transformando Santa Comba em um polo produtivo dinâmico, com grande reconhecimento pelo seu padrão de qualidade.


Meu pai trabalhou para a ELA durante quatro anos, dedicando-se à coleta de leite nas fazendas dos produtores locais. Diariamente, ele percorria longas distâncias nas vastas terras ao redor de Santa Comba, utilizando seu caminhão para transportar grandes volumes de leite fresco até a fábrica. Esse leite, após ser pasteurizado, era em grande parte destinado à exportação, contribuindo para o crescimento da reputação de Angola como produtora de laticínios de alta qualidade. Além disso, a ELA também era famosa pela produção de queijos finos e manteiga, produtos altamente procurados, tanto internamente quanto fora do país.


O comprometimento de meu pai e de outros trabalhadores da ELA ia além da simples logística de transporte: ele também promovia a disseminação de boas práticas agrícolas, incentivando os fazendeiros a adotarem técnicas modernas na criação de gado leiteiro e na melhoria da qualidade do leite. Essa colaboração resultou em uma cadeia produtiva cada vez mais eficiente, capaz de atender tanto a demanda local quanto internacional.


Socialmente, a ELA desempenhou um papel importante na coesão da comunidade. As famílias envolvidas na pecuária passaram a fazer parte de um ciclo de progresso que beneficiava todos. Além do leite pasteurizado que abastecia escolas, hospitais e mercados, os queijos e manteigas produzidos em Santa Comba também se destacavam nas exportações, levando o nome da região para além das fronteiras angolanas. O sucesso nas exportações trouxe maior reconhecimento e impulsionou o desenvolvimento das fazendas, elevando os padrões de produção e qualidade.


O impacto da ELA na infraestrutura local também foi notável. O transporte regular de grandes volumes de leite e a necessidade de escoar os produtos para os mercados de exportação incentivaram melhorias substanciais nas estradas, facilitando o tráfego de caminhões e conectando Santa Comba a outras regiões e portos de exportação. Essa rede de comércio e colaboração com produtores de leite transformou a região em um exemplo de progresso rural em Angola.


A ELA, com sua capacidade de produzir e exportar leite pasteurizado, queijo e manteiga de alta qualidade, não foi apenas uma empresa de sucesso, mas uma força motriz para o desenvolvimento econômico e social da região. Ela consolidou Santa Comba como um centro de excelência no setor de laticínios e contribuiu significativamente para o crescimento da pecuária leiteira em Angola.


A Vida em Comunidade: Um Espírito de Solidariedade

Nos anos 1950 e 1960, Santa Comba era uma comunidade vibrante e unida, onde o espírito de solidariedade e cooperação prevalecia. A vida cotidiana era marcada por uma forte ligação entre as famílias portuguesas e a população local, com trocas culturais que enriqueceram ambos os lados. A minha mãe, uma habilidosa costureira, confeccionava roupas para as famílias da comunidade, misturando padrões africanos e europeus em suas criações. Essas roupas eram muitas vezes exibidas em festividades locais, como a Festa do Espírito Santo, um evento que reunia a comunidade em celebração.


As escolas locais foram um reflexo do esforço conjunto para garantir que as crianças tivessem acesso à educação. Mesmo em um ambiente ainda em desenvolvimento, as famílias lutaram para criar oportunidades para os seus filhos, reconhecendo a importância do conhecimento como uma forma de garantir um futuro melhor. A minha educação e de meus irmãos foi moldada por esse espírito de progresso e ambição.


O Impacto da Guerra Civil: Um Êxodo de Sonhos Interrompidos

A trágica guerra civil que se seguiu à independência de Angola em 1975 deixou cicatrizes profundas em Santa Comba e em todo o país. Durante quase três décadas, Angola foi devastada por conflitos entre diferentes grupos políticos e militares, resultando em destruição, êxodo e perda de vidas. Para muitos dos habitantes de Santa Comba, o sonho de um futuro promissor foi interrompido pela violência e pelo caos.


Muitas famílias, incluindo a minha, foram forçadas a deixar suas casas e fazendas, abandonando tudo o que haviam construído ao longo de décadas. A nossa loja, que havia sido o coração comercial da comunidade, foi deixada para trás, assim como os laços que uniam as pessoas. A infraestrutura foi destruída e as atividades econômicas foram interrompidas. O êxodo que seguiu a guerra civil representou uma enorme perda para a região, tanto em termos materiais quanto humanos. Santa Comba, outrora uma comunidade próspera e unida, foi desmantelada.


O Renascimento de Santa Comba como Waku-Kungo: Uma Nova Esperança

Com o fim da guerra civil em 2002, começou o processo de reconstrução de Angola. Santa Comba, agora conhecida como Waku-Kungo, foi parte desse esforço nacional. O novo nome reflete uma valorização da cultura e identidade locais, simbolizando um novo capítulo na história da região. Algumas das famílias que haviam fugido durante a guerra começaram a retornar, trazendo consigo não apenas lembranças do passado, mas também um desejo renovado de reconstruir suas vidas.


A reconstrução de Waku-Kungo envolveu grandes esforços para restaurar a infraestrutura e revitalizar a economia local. Novos investimentos foram feitos para reerguer as estradas, escolas e hospitais que haviam sido destruídos pela guerra. A nossa loja, embora perdida para o tempo, tornou-se uma memória de um período próspero que serve de inspiração para o futuro.


Embora o progresso seja evidente, ainda há muitos desafios a serem superados. A necessidade de reconciliação entre as diferentes comunidades que habitam Waku-Kungo é um dos principais obstáculos. No entanto, o espírito de resiliência que marcou o início da história de Santa Comba permanece vivo, impulsionando os habitantes a construir um futuro melhor.


O Legado de Santa Comba: Resiliência, Trabalho e Comunidade

A história de Santa Comba é um testemunho da capacidade humana de superar adversidades e construir algo grandioso, mesmo diante dos maiores desafios. As famílias portuguesas que chegaram à região nos anos 1940, como a minha, deixaram um legado duradouro de progresso, desenvolvimento econômico e solidariedade. A minha família, através da loja, da agricultura e do trabalho para a ELA, desempenhou um papel importante na construção dessa comunidade, que permanece viva na memória de todos aqueles que viveram esse período.


Santa Comba, agora Waku-Kungo, é mais do que um lugar no mapa de Angola. É um símbolo de perseverança, de como a determinação e a união podem transformar uma terra selvagem em um lar. As memórias compartilhadas pelas famílias que viveram e trabalharam em Santa Comba são um legado vivo que deve ser preservado, tanto para honrar o passado quanto para inspirar as gerações futuras a valorizar o trabalho árduo, a colaboração e o respeito mútuo.





















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