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Introdução: O Chamado de Santa Comba

Venham, irmãos e irmãs, mergulhar comigo nesta memória viva, nesse recorte de tempo em que a cidade Waku Kungo era conhecida como Santa Comba – ou simplesmente, Cela. Aqui, não havia apenas ruas e casas; havia um universo inteiro de encontros inesperados, risos que ecoavam pelas ruas, desafios que nos faziam crescer e celebrações que marcavam cada instante, formando a essência da nossa identidade.


Escrevo estas linhas com o coração transbordando de nostalgia e com a convicção de que cada lembrança, cada grito vibrante de "vamos lá, calengues!" carregava o espírito indomável de uma juventude que jamais se deixou aprisionar pelas convenções do mundo adulto. Lembro-me das manhãs, quando o ar estava impregnado de promessas e a luz do sol surgia como um sinal de que um novo dia se desdobrava em infinitas possibilidades. Cada esquina de Santa Comba era uma porta aberta para segredos e histórias por descobrir – era como se a cidade inteira pulsasse no mesmo ritmo de nossos corações acelerados, prontos para transformar o comum em extraordinário.


Este texto é, antes de tudo, uma carta de amor e saudade para aqueles dias dourados – um convite sincero para que todos nós, que partilhamos dessa história, possamos reviver com intensidade as emoções vibrantes da nossa infância. Prepare-se para uma viagem sensorial e emocional, onde o fado melancólico se mistura ao semba, ao merengue contagiante e à nossa fala repleta de gírias que só nós conhecemos. Que estas palavras sejam o seu bilhete para uma viagem ao coração de Santa Comba, onde cada detalhe brilha com a intensidade de um sonho.


As Manhãs e as Ruas da Cidade

Nas manhãs de Santa Comba, o nascer do sol era um espetáculo à parte. Logo após o matabicho, quando o ar ainda exalava o frescor da promessa, nós, os putos, saíamos de casa com uma ânsia voraz de desbravar cada rua e recanto. No centro, as ruas asfaltadas reluziam sob a luz intensa – como se cada pedaço de concreto fosse lapidado pelo sol para revelar a beleza escondida na rotina diária. Nos aldeamentos, por outro lado, os caminhos de pirite vermelha contavam histórias de um tempo rústico e verdadeiro, onde cada passo reforçava a nossa conexão com a terra.


Caminhávamos por calçadas ladeadas por árvores frondosas como as mangueiras, cujas sombras refrescavam nossos passos nas horas mais quentes. O som ritmado de nossos passos se misturava ao burburinho dos vendedores ambulantes, que com vozes altas anunciavam frutas frescas e iguarias locais. Cada porta entreaberta e cada janela revelava um mundo particular – uma conversa animada, um riso compartilhado ou até uma cena familiar que, por um breve instante, nos fazia sentir parte de algo maior.


No centro, os jovens urbanos, conhecidos entre nós como "calçinhas caluandas", desfilavam com seu estilo moderno, enquanto nós, com nosso jeito simples e sempre prontos para um "vamo lá, putos!", seguíamos explorando cada esquina. O aroma do café fresco, preparado com todo o carinho pelas mães, se misturava ao cheiro da terra recém-rega, criando uma atmosfera que parecia entoar a própria essência de Santa Comba. Mesmo quando os cains, com seus passos firmes e olhar atento, surgiam para impor ordem, a cidade vibrava com o espírito livre e o riso contagiante de um povo que celebrava cada novo amanhecer.


Os Campos de Futebol e a Nossa Paixão pelo Jogo

O futebol era o pulsar de nossa existência em Santa Comba – a expressão máxima de liberdade e camaradagem. Nos campos de terra batida, disputávamos partidas de futebol 11 com uma intensidade que fazia o coração disparar. Esses gramados simples, porém mágicos, eram palco de vitórias, derrotas e, principalmente, de momentos eternizados em risos e abraços apertados.


Nas tardes, o sol ameno banhava o campo com uma luz dourada, e cada jogada se transformava em espetáculo. Nossos sapatos, marcados pela poeira da terra vermelha, eram testemunhas silenciosas de cada drible e chute. As roupas, muitas vezes costuradas com tanto carinho pelas nossas mães – eu mesmo sentia uma banga enorme, pois minha mãe fazia cada peça com amor – demonstravam o orgulho e a dedicação de pertencer àquela comunidade vibrante. Mesmo em campos modestos, nossa paixão transformava cada golo em um momento de pura euforia, um "vamo lá, putos!" ecoando pelos ares.


Atrás do clube, disputávamos partidas de futebol de salão com o mesmo fervor. Ali, num ambiente mais intimista, o ritmo acelerado e a estratégia se misturavam com a irreverência dos gritos e das risadas, criando uma arena de emoções onde o jogo era a nossa verdadeira linguagem. E, em meio a tudo isso, não podemos esquecer das corridas paralelas – das jincanas de carro, dos ralis que transformavam as avenidas em circuitos de pura emoção. Carros velhos, decorados com adesivos feitos à mão e pinturas improvisadas, desfilavam com personalidade, enquanto os motores rugiam e os pneus cantavam, acompanhados dos gritos de “tá fixe, pá!” que nos impulsionavam a desafiar limites.


Cada corrida, seja de motocicleta, go-cart ou bicicleta, era uma celebração da nossa juventude – com nossas "calças bocas-de-cino" esvoaçantes e os platform shoes que elevavam nossa confiança, cada competição era um grito de liberdade. E mesmo quando os cains espreitavam, a emoção e a paixão pelo jogo transformavam cada momento em uma verdadeira obra de arte.


Jogos e Improvisos: "Esconde, que o Kazombi vem!" e "Bate e Pega"

As tardes de Santa Comba eram recheadas de brincadeiras que faziam a imaginação voar. Entre os jogos que mais animavam nossos dias, destacava-se o “Esconde, que o Kazombi vem!” – uma versão criativa do esconde-esconde. Inspirado na ideia de um “kazombi”, meio zombie, meio lenda, o jogo transformava o medo em pura diversão.


Quando alguém gritava essa frase, era como se um alerta de aventura se espalhasse pela vizinhança, e os putos se dividiam entre os que se escondiam e o procurador, que corria, gritando “vamo lá, putos!” com toda a energia possível. Cada esconderijo, escolhido com engenhosidade – debaixo de arbustos, atrás de muros ou em becos estreitos, tanto no centro quanto nos recantos dos musseques do Buandangue – tornava o jogo um verdadeiro espetáculo de criatividade e adrenalina.


Também havia o clássico “Bate e Pega”, onde a emoção se intensificava a cada toque. Nesse jogo, os que estavam "batendo" perseguiam os demais com uma energia vibrante, e o grito “tá fixe, pá!” se misturava aos risos e à agitação, reafirmando que a liberdade e a alegria eram nossa verdadeira herança. Entre esses jogos, improvisávamos refrãos e canções, que se espalhavam como um feitiço pelo bairro, como o inesquecível:

Ai, ai, eu quero um pijama aos quadradinhos,

Um pijama aos quadradinhos,

Um pijama aos quadradinhos,

Um pijama aos quadradinhos...

Quero, quero um pijama aos quadradinhos,

Ai, ai, eu quero um pijama aos quadradinhos!


Cada verso era um grito de liberdade, uma explosão de energia que tornava a infância em Santa Comba um tempo de pura celebração. A nossa linguagem, com gírias como "vamo lá, putos!", "tá fixe, pá!" e "bué de sentimento!", fazia com que cada jogo fosse uma declaração de que a criatividade e a irreverência eram o nosso maior tesouro.


Aventuras Noturnas e Histórias ao Redor da Fogueira

Quando o sol se despedia e a noite se instalava em Santa Comba, o cenário se transformava num universo encantado. Era a hora de nos reunirmos em volta das fogueiras, onde o crepitar da lenha e o cheiro de fogo queimado assando massarocas, criavam um ambiente mágico para que as histórias fluíssem soltas. Os kotas, sábios e respeitados moradores do Buandangue, contavam lendas e causos que misturavam o fado melancólico ao semba e ao ritmo alegre dos merengues e da rebita.


Sentados num círculo apertado, cada palavra dos kotas era como um mantra, repleto de sabedoria e adornado com as expressões que só nós sabíamos usar – "tá fixe, pá!" e "bué de sentimento!" ecoavam, lembrando-nos de que mesmo na escuridão, nossa alma brilhava intensamente. Em meio às histórias, surgia sempre o Papilongas, o guarda noturno de dedos ausentes, que, com seu revólver à cintura, fazia piada com seu jeito imponente – "Olha lá o Papilongas, aquele zé ruela que nem os fantasmas ousam incomodar!" – arrancando gargalhadas que se misturavam com o som do fogo.


Enquanto as chamas dançavam, lançando sombras misteriosas, os putos ouviam atentamente, imaginando mundos distantes e vivendo aventuras que só a imaginação permitia. Os improvisos musicais se entrelaçavam às histórias, criando uma trilha sonora feita de violões desafinados e vozes que, em uníssono, entoavam refrãos que ficavam gravados na memória. Esses momentos de encontro e comunhão eram um verdadeiro ritual noturno, onde as gerações se uniam para celebrar a vida, a liberdade e a magia de ser jovem.


A Conexão com a Terra e as Tradições Agrícolas

Ah, a terra de Santa Comba! Crescer ali significava ter o coração eternamente ligado à natureza e aprender, desde cedo, a valorizar cada semente, cada colheita e cada gesto de respeito pela terra. As manhãs no campo eram quase místicas: o aroma da terra fresca, o som suave do orvalho nas folhas e o calor reconfortante que nos despertava para um novo dia repleto de trabalho e aprendizado.


Nos aldeamentos, nas fazendas e plantações dos arredores, muitos de nós ajudávamos nossos pais e avós a cuidar dos cultivos. Acordávamos antes do sol, e logo os campos se encheram de vida com mandioca, milho, batata-doce e frutas tropicais. Cada colheita era uma celebração da união – um momento em que a comunidade se reunia para dividir o suor e as risadas, trocando o "kumbu" ganho com tanto esforço por alimentos fresquinhos ou aquele lanche especial que aquecia o coração.


No Buandangue, o bairro dos trabalhadores, as estradas de terra batida, marcadas pelo vermelho vibrante do pirite, contavam histórias de superação e da força de um povo unido. Entre uma labuta e outra, os vizinhos se juntavam, partilhando histórias e, com um “tá fixe, pá!”, celebravam a generosidade e a resiliência que faziam da vida no campo algo especial. Cada semente plantada era um sonho depositado na terra, esperando para florescer, e cada colheita se transformava numa festa, reforçando a certeza de que a verdadeira riqueza estava na união e na simplicidade do nosso cotidiano.


A Influência dos Sanguitos e a Loja da Família

Nossa loja familiar era o coração pulsante de Santa Comba, onde as tradições se encontravam com a modernidade de forma despretensiosa. Ali, entre prateleiras repletas de produtos que iam de alimentos a artigos de moda e beleza, o "kumbu" era trocado com um sorriso e um “tá fixe, pá!” ecoava em cada negociação.


Era na loja que os jovens de Luanda, com seu estilo urbano e moderno, faziam suas compras. Esses visitantes, que às vezes eram chamados de “sanguitos” – embora a expressão apareça apenas pontualmente – traziam consigo novidades, como pulseiras de plástico coloridas, missangas e o perfume "Tabu", símbolo de sofisticação. Enquanto eles demonstravam seu estilo, nós, orgulhosos de nossas raízes, aproveitávamos para trocar histórias e rir das diferenças, reforçando que, independentemente do visual, a nossa essência era a mesma: a paixão por viver e a autenticidade de Santa Comba.


Cada compra na loja era uma experiência única, um encontro entre o sabor do mercado de Buandangue, onde a simplicidade reinava, e o frescor da capital. Essa troca enriquecia a nossa cultura, e, mesmo com a modernidade pontual dos visitantes, a nossa identidade se fortalecia a cada "kumbu" trocado e a cada risada compartilhada.


A Educação e os Sonhos para o Futuro

Mesmo em meio a tanta diversão, correria e brincadeiras, a escola era o nosso portal para um mundo de possibilidades. Em Santa Comba, onde a integração era real e as diferenças se misturavam num mesmo rebanho de conhecimento, frequentávamos a Escola Industrial e Comercial Narciso do Espírito Santo (EICNES). Apesar de suas salas simples e modestas, a EICNES pulsava com o desejo de ensinar e inspirar.


Mesmo após dias repletos de "jincanas de carro", corridas de bicicleta, partidas de futebol – tanto nos campos de terra batida quanto no futebol de salão atrás do clube – nós nos reuníamos na escola com os olhos brilhando de expectativa. Cada aula era uma revolução silenciosa, onde os professores, verdadeiros mestres e contadores de causos, nos ensinavam não só as matérias, mas também lições de vida que se misturavam com expressões como "vamo lá, putos!" e "tá fixe, pá!". Esses momentos de aprendizado eram a base para um futuro brilhante, seja como engenheiros, professores, agricultores ou comerciantes.


Na EICNES, a integração era a norma. Meninos e meninas aprendiam lado a lado, trocando histórias e sonhos, e os momentos de recreio eram oportunidades para debates, risos e planos ambiciosos. Cada lição era um tijolinho na construção do nosso destino, e mesmo diante dos desafios – com os cains espreitando de vez em quando – o ambiente escolar nos fazia acreditar que, com esforço e dedicação, o futuro seria transformador.


Diversão sobre Rodas: Jincanas, Corridas e Ralis

Ah, que tempos inesquecíveis de pura adrenalina e diversão sobre rodas! Em Santa Comba, as ruas eram verdadeiros circuitos de emoção que transformavam cada manhã e cada tarde num espetáculo vibrante. Lembro-me com clareza das jincanas de carro, onde transformávamos cada avenida num autêntico rali. Carros velhos, enfeitados com adesivos feitos à mão e pinturas improvisadas – verdadeiras obras de arte que refletiam nosso espírito criativo – desfilavam com personalidade, enquanto nós, com os olhos arregalados e o coração acelerado, acompanhávamos cada manobra e ultrapassagem, gritando “vamo lá, putos!” e “tá fixe, pá!” que ecoavam pelos becos e avenidas, inclusive nos cantos mais rústicos dos musseques.


Não parava por aí: disputávamos corridas de motocicletas, go-cart e de bicicletas, transformando Santa Comba num parque de velocidade. Lembro-me das tardes em que, mesmo sob o olhar atento dos cains, pedalávamos com nossos tênis firmes – jamais descalços – em pistas improvisadas, onde cada grito de “bazar, putos!” se misturava com as risadas e o som frenético dos motores. Era uma mistura de adrenalina e pura alegria, onde o tempo parecia desacelerar enquanto vivíamos cada segundo intensamente.


As corridas de bicicleta transformavam os domingos em dias ainda mais especiais, sobretudo quando meu amigo Zé Estrela conquistava a vitória. Nos campos verdes, disputávamos quem alcançava a baliza primeiro, com nossas “calças bocas-de-cino” – aquelas bell bottoms dos anos 70 que esvoaçavam com cada pedalada – e os platform shoes que, com seu design arrojado, marcavam cada movimento com estilo e irreverência. Cada competição era um grito de liberdade, um "kumbu" simbólico trocado como prêmio, enquanto os gritos e os sorrisos confirmavam que a nossa juventude era feita de desafios e vitórias.


Aventuras Culturais: Cinema, Teatro e Matinês

A cultura em Santa Comba era tão vibrante quanto nossas brincadeiras. Ir ao cinema era um evento mágico: nós, com os amigos, juntávamos nossos "kumbu" e formávamos uma fila animada para assistir aos filmes na pequena sala de projeção da cidade. As sessões eram repletas de risos, pipoca e um entusiasmo que transformava o escuro da sala num palco onde os sonhos ganhavam vida.


O teatro também tinha seu lugar especial. Na Escola Industrial e Comercial Narciso do Espírito Santo (EICNES), os meus colegas sobre orientação do Professor Manuel Bento, se transformavam em atores e encenavam peças que iam desde clássicos reinterpretados até histórias originais, repletas de humor e emoção. Cada ensaio era uma oportunidade de imaginar e criar, e os diálogos improvisados – recheados de gírias como "vamos lá, putos!" e "tá fixe, pá!" – davam vida a uma arte que nos fazia acreditar que, um dia, também poderíamos brilhar no palco.


Além disso, as matinês culturais eram momentos de pura inspiração, onde as apresentações teatrais, os recitais de poesia e os debates animados sobre os filmes alimentavam nossos sonhos e expandiam nossos horizontes. Esses encontros nos ensinavam que a cultura era uma celebração da vida, uma forma de transformar o ordinário em extraordinário.


Personagens Inesquecíveis: Papilongas, Cachola, Jeremias e Outros

Santa Comba era rica em personagens que se tornaram parte indelével da nossa história.

  • Papilongas era o guarda noturno português, de dedos ausentes, que, com seu revólver à cintura, patrulhava as ruas com uma postura que misturava seriedade e um toque de mistério. Nós, putos curiosos, espiávamos pelas janelas imaginando as histórias que aquele homem carregava, e suas passadas ecoavam como o som de um tempo que não se esquece.

  • Cachola, o vendedor de lotarias, desfilava pelas ruas com seu jeito cambaleante e sorriso fácil. Suas histórias mirabolantes sobre prêmios improváveis e causos da sorte faziam-nos rir e sonhar, transformando cada bilhete vendido num símbolo de amizade e esperança.

  • Jeremias, o burro mascote, era o companheiro silencioso do nosso campo de futebol. Com sua postura calma e olhar sereno, ele vagava pelo campo, interrompendo as partidas e fazendo parte das nossas brincadeiras com tanto encanto que, mesmo teimoso, era sempre motivo de risos e carinho.

Outras figuras, como os poucos visitantes modernos – os jovens de Luanda que, com seu estilo urbano, traziam novidades para a cidade – faziam parte dessa tapeçaria viva, mas logo deixavam o protagonismo para os personagens que só Santa Comba podia oferecer.


A Conexão com a Terra e as Tradições Agrícolas

Crescer em Santa Comba era também estar profundamente enraizado na terra. As manhãs no campo eram quase místicas, com o aroma da terra fresca, o som do orvalho escorrendo pelas folhas e o calor suave que nos despertava para um novo dia de trabalho e aprendizado. Nas fazendas e plantações dos arredores, muitos de nós ajudávamos nossos pais e avós a cuidar dos cultivos.


Acordávamos antes do sol, e logo os campos se transformavam num mar de vida: mandioca, milho, batata-doce e frutas tropicais se espalhavam pelo horizonte. Cada colheita era uma celebração coletiva, um momento em que a comunidade se reunia para compartilhar o suor, os sorrisos e até mesmo o "kumbu" ganho com tanto esforço. No Buandangue, o bairro dos trabalhadores, as estradas de terra batida – marcadas pelo vermelho vibrante do pirite – contavam a história dos desafios diários, onde cada gesto de solidariedade era celebrado com um "tá fixe, pá!" e um abraço fraterno.


Era no silêncio dos campos que aprendíamos sobre paciência, sobre a importância de cuidar da terra e de valorizar cada semente plantada. Cada colheita era um lembrete de que a verdadeira riqueza não se mede em dinheiro, mas nos momentos compartilhados e no amor que se cultiva junto à natureza. Esses ensinamentos se enraizaram em nossos corações, formando uma conexão que até hoje nos faz lembrar com carinho dos dias simples e intensos de trabalho e união.


Agricultores e Lacticínios da Cela

Na região da Cela, esse período que antecedeu 1975 marcou uma era de intensas transformações no setor agrícola e na produção de lacticínios. Essa época foi caracterizada por uma organização rural dual, em que pequenas comunidades – os aldeamentos – conviviam com explorações de média dimensão, conhecidas como fazendas médias. Nos aldeamentos, famílias cultivavam parcelas modestas de terra, geralmente entre 4 e 6 hectares, onde a agricultura de subsistência e a criação de animais se integravam de maneira orgânica, sustentando o núcleo familiar. Já nas fazendas médias, que se estendiam por áreas que podiam variar de 50 a 100 hectares, adotava-se um modelo mais empresarial, com foco na produção comercial e na aplicação de técnicas modernas, mesmo que rudimentares segundo os padrões atuais.


Nesse contexto, a introdução de raças de gado com alto potencial produtivo, como as dinamarquesas, foi um fator determinante para o fortalecimento do setor lácteo local. Documentos da época apontam que, em 1962, aproximadamente 70% das vacas das fazendas médias estavam em lactação, alcançando uma produção média anual de cerca de 3.500 kg por animal. Com preços de mercado estipulados na ordem de 2,00 dólares por quilo, cada animal gerava uma receita anual aproximada de 7.000 dólares.


Esses números evidenciam não só a eficiência na gestão dos rebanhos, mas também a aposta dos agricultores na qualidade e na produtividade como motores do desenvolvimento rural.


A diversificação das atividades também era um traço marcante dessa época. Além do leite, os produtores garantiam fontes alternativas de renda através da venda de vitelos – cujas receitas chegavam a cerca de 3.750 dólares – e do cultivo de culturas complementares, como milho, amendoim e abacaxi, com faturamentos que podiam atingir 10.000 e 39.000 dólares, respectivamente. Essa integração entre a produção pecuária e agrícola permitia um equilíbrio econômico, contribuindo para a resiliência dos sistemas produtivos mesmo diante das adversidades típicas do ambiente colonial.


A infraestrutura rural contava, ainda, com investimentos pontuais realizados pelas administrações coloniais, que viabilizavam a implementação de métodos de irrigação e mecanização modestos. Tais iniciativas, embora limitadas, ajudaram a elevar a qualidade do leite produzido, permitindo que o insumo se destacasse no fornecimento para as primeiras unidades industriais de lacticínios. Esse leite de alta qualidade, fruto de um manejo rigoroso e da introdução de tecnologias importadas, pavimentou o caminho para o surgimento de empreendimentos que mais tarde se consolidariam na indústria láctea angolana.


A combinação de métodos tradicionais com a inovação introduzida pelo modelo das fazendas médias criou uma base sólida para o desenvolvimento do setor. A organização de grupos de agricultores, a formação de cooperativas e a aplicação de técnicas de manejo intensivo possibilitaram a ampliação da produção, gerando excedentes que abasteciam tanto o mercado interno quanto, eventualmente, futuras operações de exportação. Os dados da época demonstram que esses esforços resultaram em uma significativa geração de renda, que se refletia na melhoria das condições de vida das famílias rurais e no fortalecimento da economia regional.


Ao revisitarmos essas páginas da nossa história, celebramos a criatividade e a perseverança daqueles que, com esforço e visão, ajudaram a transformar Cela num polo de produção de lacticínios de excelência. Essa herança, alicerçada na integração entre agricultura familiar e práticas empresariais, continua a inspirar os nossos dias e a reforçar o orgulho por uma trajetória marcada pela adaptação e pela inovação.


Um Último Convite: Revivendo Cada Detalhe

Ei, meu irmão, deixa eu te dizer: se você ainda guarda no peito aquele fogo da nossa infância, vem comigo relembrar cada pedacinho de Santa Comba!


Que a saudade nos embale, porque a cidade – que já se chama Waku Kungo, mas que em nossos corações sempre será Santa Comba – é o berço de uma história única, repleta de encontros, risos, desafios e daquela irreverência que só nós putos sabemos expressar.


Lembra das manhãs ensolaradas, quando, logo após o matabicho, a gente saía com os pés calçados, mas com o espírito livre, explorando as ruas asfaltadas do centro e os caminhos de pirite vermelha dos aldeamentos? Cada esquina era um convite, um "tá fixe, pá!" que nos impulsionava para mais uma aventura.


E os campos de futebol – aqueles gramados de terra batida onde disputávamos partidas de futebol 11 e futebol de salão, com as nossas "calças bocas -de-cino" esvoaçantes e os platform shoes que marcavam cada corrida – eram palcos de sonhos e vitórias, onde cada gol era celebrado com gritos de "vamo lá, putos!" e abraços apertados.


Não podemos esquecer das brincadeiras que coloriam nossas tardes, seja no "Esconde, que o Kazombi vem!" ou no "Bate e Pega", onde cada momento se transformava em pura adrenalina e criatividade. E entre uma corrida e outra, improvisávamos refrãos que ecoavam pelo bairro, transformando o simples em extraordinário.


E o que dizer das aventuras sobre rodas? As jincanas de carro, os ralis que faziam das avenidas verdadeiros circuitos de emoção, as corridas de go-cart e bicicletas – todas essas competições eram a nossa forma de provar que a juventude era feita de coragem, ousadia e, claro, muito "kumbu" trocado nos mercados como prêmio simbólico.


A cultura pulsava também nos cinemas, teatros e matinês da EICNES, onde, entre uma aula e outra, sonhávamos com um futuro brilhante, enquanto os professores, com seu jeito único e cheio de "vamo lá, putos!", nos ensinavam que o conhecimento era a chave para transformar nossos destinos.


E, finalmente, não posso deixar de recordar os personagens que marcaram essa trajetória: Papilongas, o guarda noturno de dedos ausentes; Cachola, o vendedor de lotarias que distribuía sorte e histórias; Jeremias, o burro mascote que desfilava pelo campo; e todos aqueles encontros e risos que moldaram nossa infância.


Que esta viagem, repleta de risos, de "tá fixe, pá!" e de memórias que aquecem o coração, te transporte de volta aos dias inesquecíveis de Santa Comba, onde a liberdade, a amizade e a paixão pela vida eram celebradas em cada instante.


Soneto da Liberdade Eterna


Em Santa Comba brotava a rebeldia,

de putos livres em fado e paixão,

corria a vida em rima e no coração,

nas ruas, viva a doce magia.


Sob o olhar severo, a esperança sorria,

num "vamo lá, putos!" em ousada canção,

tecendo nos becos a nossa condição,

onde a infância em verso jamais se esfria.


E ao entoar, o peito se inflama,

nas notas que o ar sereno embala;

o sonho brota, doce, em alma chama.


Do verso, a vida antiga se aclama,

e o fado, em brado suave, exala

o encanto eterno que o tempo trama.


Que cada palavra aqui escrita seja um convite para revivermos, com toda a intensidade dos nossos corações luso-angolanos, os tempos de Santa Comba – Cela, um tempo de encontros, de jogos, de aventuras e de uma liberdade que jamais se apagará. Venha, embarque nessa viagem ao coração de nossa infância, e deixe que a saudade e a paixão dos dias de outrora toquem sua alma, assim como tocam a minha.


Por João Elmiro da Rocha Chaves





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