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O Visionário da Kissanga Kungo, Cela

2 de nov de 2024

5 min de leitura

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Por João Elmiro da Rocha Chaves


No coração de Kissanga Kungo, onde o sol do meio-dia banha a terra vermelha de pirite, aquecendo a pele e fazendo o ar vibrar com seu calor intenso, as vozes da aldeia ecoam em harmonia, acompanhadas pelo cheiro da terra e o som distante das crianças brincando. Zé, um jovem de olhar sonhador e roupas modestas, se detém diante do velho poço. A água que reflete seu rosto também espelha um futuro além do que seus olhos podiam inicialmente imaginar — um futuro onde ele, mais do que um sobrevivente, é um pioneiro e líder da sua comunidade.


Depois das longas jornadas ajudando nas colheitas e realizando as tarefas que sustentavam a aldeia, Zé encontrava no poço um lugar de sonhos. Cada vez que olhava para baixo, para seu próprio reflexo, murmurava para si mesmo: “Eu vejo o que posso me tornar”. Eram esses momentos que o conectavam ao futuro, como se ele estivesse prestes a atravessar um limiar invisível. O vento quente passava, levantando uma leve poeira, e ele se perdia em seus pensamentos, ouvindo apenas o eco das suas próprias palavras.


Dona Chica, a contadora de histórias da aldeia, uma mulher cujos olhos abrigavam a sabedoria dos tempos, observava o jovem Zé com carinho. Ela via em seus gestos, na maneira como ele ficava perdido em pensamentos, a chama de algo maior. Certa tarde, ela se aproximou e, com sua voz suave e ao mesmo tempo repleta de força, disse: “Menino Zé, o verdadeiro trabalho acontece no coração e na mente. Semeie ali, e sua colheita será eterna”.


Zé se lembrava bem de uma história que Dona Chica contou certa noite à luz da fogueira. Falava sobre um jovem que plantou sementes mágicas que, com dedicação, transformaram um campo árido em um jardim exuberante. Aquela história o inspirou profundamente, mostrando que o poder da transformação vinha de dentro. Essas palavras e histórias ecoaram dentro de Zé, criando raiz.


Começou, então, a dedicar seu tempo não apenas à lavoura e ao trabalho braçal, mas ao estudo, ao conhecimento. No início, enfrentou dificuldades. A falta de livros e materiais tornava o aprendizado um verdadeiro desafio. Houve noites em que, exausto do trabalho no campo, ele lutava contra o sono para ler as poucas páginas que conseguira emprestadas. Mas a determinação era mais forte. De modo autodidata, aprendeu sobre novas técnicas de agricultura e métodos de conservação de água, aplicando suas descobertas aos campos da aldeia, que passaram a florescer além do esperado.


Logo, a transformação de Zé não era mais apenas um reflexo no poço, mas uma revolução tangível na aldeia. Os campos estavam mais verdes, a produção mais abundante, e o poço, que antes representava apenas a subsistência, agora era um ponto de encontro, onde os aldeões compartilhavam esperanças renovadas. Zé não apenas sonhava; ele liderava.


Foi ele quem organizou a construção de um sistema de coleta de água da chuva, garantindo que mesmo as estações secas não mais trouxessem desespero. Foi ele quem reformou a pequena escola, convidando os jovens para aprender ao seu lado, ensinando-os a ler, a escrever e a pensar grande, a imaginar o futuro não como algo inalcançável, mas como algo a ser cultivado dia após dia. Durante uma aula, Zé dizia: “Cada letra que vocês aprendem hoje é uma ferramenta para construir o amanhã. Vocês são os arquitetos do nosso futuro”.


A aldeia inteira se transformou. Inspirados pela determinação de Zé, os jovens passaram a enxergá-lo não apenas como um igual, mas como um verdadeiro líder, um exemplo de que a mudança começa dentro de cada um. E juntos, os jovens de Kissanga Kungo plantaram as sementes de uma comunidade mais justa e próspera.


Foi então que, num dia aparentemente comum, uma delegação de uma organização internacional chegou à aldeia. Vieram para conhecer o jovem líder cujas ações estavam transformando vidas. Zé os guiou por entre os campos verdes, mostrando os sistemas de irrigação, o viveiro comunitário, e a pequena escola que agora se tornara um centro de aprendizagem. Um dos visitantes, com um olhar impressionado, comentou: “Nunca vimos algo assim em uma aldeia tão pequena. É inspirador”. Zé sorriu, respondendo: “Aqui, todos têm um papel importante no futuro que estamos construindo”.


A decisão de partir não foi fácil. Zé sabia que suas raízes estavam ali, profundamente fincadas na terra vermelha de Kissanga Kungo. Mas ele também sabia que, ao partir, poderia voltar ainda mais preparado para ajudar seu povo. Durante semanas, preparou outros jovens para assumirem suas responsabilidades. Dona Chica, com os olhos marejados de orgulho, disse-lhe ao partir: “Você se viu nesse poço e tornou a visão realidade, Zé. Mas lembre-se, o reflexo mais verdadeiro é aquele que vive nos olhos dos outros”.


No dia de sua partida, a aldeia inteira se reuniu na praça, junto ao poço. O adeus foi repleto de esperança, não de tristeza. Todos sabiam que Zé voltaria, e com ele traria novos conhecimentos, novas oportunidades.


E assim foi. Durante seu tempo fora, Zé absorveu cada lição e, ao mesmo tempo, ensinou ao mundo que a força de uma comunidade está no coração de seu povo. Ele aprendeu sobre desenvolvimento sustentável, práticas avançadas de agricultura e, acima de tudo, sobre a importância da união comunitária. Quando voltou, trouxe consigo especialistas dispostos a ajudar. A aldeia se transformou num modelo para outras regiões, um exemplo de que o desenvolvimento não precisa vir de fora, mas pode ser semeado no solo de casa.


A praça de Kissanga Kungo tornou-se o coração pulsante da aldeia. Ali, onde antes apenas o poço representava um futuro de incertezas, agora havia uma biblioteca, salas de aula, e um centro comunitário vibrante. As crianças corriam entre as árvores, e os adultos se reuniam para discutir novos projetos. O poço ainda estava lá, mas agora como um símbolo das possibilidades infinitas.


Num final de tarde tranquilo, Zé se deteve diante do poço mais uma vez. O reflexo que viu era de um homem que, com coragem e visão, transformou não apenas a própria vida, mas a de todos ao seu redor. O ar estava fresco, e o céu tingia-se de laranja e rosa enquanto o sol se punha. As crianças brincavam ao seu lado, sorrindo, livres das antigas dificuldades, prontas para um futuro criado com amor e dedicação.


Com um sorriso sereno e o coração em paz, Zé olhou para o horizonte. Cada dia que passava era uma promessa cumprida, uma esperança realizada. E, enquanto a luz dourada dava lugar à noite tranquila, ele agradeceu, em silêncio, pela jornada, pela comunidade e pelo futuro que ainda estava por vir.


FIM.



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