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Os Pioneiros da Cela: A Verdadeira História Não Contada

há 5 dias

16 min de leitura

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Introdução: A Geração de Pioneiros que Moldou o Futuro de Angola

A história de Angola, muitas vezes marcada pelos conflitos e pela luta pela independência no século XX, tende a deixar em segundo plano outra narrativa igualmente essencial: a dos pioneiros que pavimentaram o caminho para uma Angola moderna, muito antes das guerras ecoarem por suas vastas paisagens.


Homens e mulheres que migraram de Portugal nas décadas de 1940 e 1950 não chegaram apenas em busca de uma nova vida. Eles vieram com uma missão mais ambiciosa: transformar terras inexploradas e desafiadoras em uma sociedade próspera, caracterizada pela convivência harmoniosa de culturas e pelo desenvolvimento de infraestruturas modernas e práticas agrícolas inovadoras.

Entre esses pioneiros, destacavam-se meu pai, João de Deus Chaves, e um grupo de 31 homens portugueses, incluindo quatro engenheiros visionários como Boa Ventura (o Chefe), Melo, Pereira e Leitão. Eles chegaram à região da Cela a partir de 1949, armados de coragem, conhecimento e uma determinação inabalável para vencer os desafios da terra e do tempo.


Esses pioneiros enfrentaram não apenas a dureza da terra e o isolamento, mas também as crescentes tensões políticas que, anos mais tarde, ameaçariam tudo o que eles haviam construído. Mesmo diante dessas adversidades, foram fundamentais para o progresso multirracial e multicultural que, muitas vezes, é esquecido nas narrativas sobre Angola.


Este artigo é uma homenagem à geração que ajudou a conduzir Angola para o limiar da modernidade com trabalho árduo e sacrifícios pessoais. Também é uma reflexão sobre como forças externas e interesses neocoloniais traíram o legado que esses pioneiros construíram com tanto empenho.


Dividido em cinco seções, este artigo guiará o leitor por uma jornada através de uma história muitas vezes não contada:

  1. A Chegada dos Pioneiros: Explora o cenário de Angola antes da chegada dos portugueses e o início do Colonato da Cela, um projeto que transformou a região.

  2. A Construção do Colonato: Descreve os desafios e conquistas que marcaram o desenvolvimento das fazendas leiteiras e impulsionaram a economia local.

  3. Progresso Multirracial e Desenvolvimento Comunitário: Mostra como a colaboração entre portugueses e angolanos criou uma sociedade integrada e próspera.

  4. A Ameaça da Guerra Fria e a Defesa Local: Revela como a paz construída pelos pioneiros foi abalada por conflitos globais.

  5. Traição e Legado: Analisa como os sacrifícios dos pioneiros foram esquecidos ou distorcidos, mas como o seu espírito de resiliência ainda continua a inspirar.

Esta é a história da minha família e de todos aqueles que acreditaram em um futuro melhor para Angola. É uma narrativa de esperança, coragem, e um legado que merece ser reconhecido e celebrado.


1. A Chegada dos Pioneiros

No final da década de 1940, Angola era um vasto território, rico em recursos naturais e com um potencial inexplorado. Apesar de ser uma colônia portuguesa desde o século XVI, a maior parte de suas regiões interiores permanecia praticamente intocada. Infraestruturas como estradas, escolas e hospitais eram raras, deixando grande parte da população dependente da agricultura de subsistência, caça e pesca.


A região que mais tarde se tornaria o Colonato da Cela era composta por pequenas sanzalas, habitadas por comunidades locais que viviam em harmonia com a terra. O ritmo de vida seguia o ciclo natural das estações, e as tradições ancestrais eram mantidas vivas, com um conhecimento profundo sobre a terra, as florestas, os rios e as savanas. Contudo, o isolamento geográfico também significava uma ausência de serviços essenciais, como transporte, saúde e educação, o que limitava o desenvolvimento econômico e social da região.


Em Portugal, o regime do Estado Novo, liderado por António de Oliveira Salazar, considerava Angola um território com imenso potencial econômico, impulsionado por recursos como diamantes, petróleo e terras férteis. Salazar chegou a nomear a nova vila de Santa Comba, em Angola, em homenagem à cidade onde nasceu em Portugal. O governo colonial via a modernização das colônias como uma estratégia para fortalecer a posição de Portugal na África e no cenário econômico global. A agricultura foi identificada como a chave para esse desenvolvimento, e a região da Cela foi escolhida para um ambicioso projeto de colonização agrícola.


Foi nesse contexto que meu avô, João da Rocha Machado Salvador, e meu pai, João de Deus Chaves, decidiram buscar uma nova vida em Angola. O meu pai, juntamente com um grupo de 31 homens portugueses, incluindo engenheiros renomados como Boa Ventura (o Chefe), Melo, Leitão e Pereira, eles chegaram à região da Cela antes de 1949. Com ferramentas, conhecimento técnico e uma determinação inabalável, esses pioneiros tinham uma missão clara: transformar terras virgens em um centro agrícola produtivo e próspero. O meu avô e família chegaram um pouco depois.


A chegada desse grupo de 31 pioneiros marcou o início de uma transformação profunda. A região, coberta por densa vegetação e sujeita a condições climáticas extremas — alternando entre chuvas torrenciais e secas severas —, apresentava desafios consideráveis. Além disso, doenças tropicais e o isolamento físico impunham riscos constantes. No entanto, a vontade de criar algo duradouro superou essas dificuldades iniciais.


Os pioneiros trouxeram consigo conhecimento técnico e novas tecnologias que revolucionariam a produção agrícola na região. Ao mesmo tempo, os angolanos locais contribuíram com seu conhecimento sobre o clima e as plantas nativas, estabelecendo uma valiosa troca de saberes. Essa colaboração inicial foi crucial para o sucesso do projeto de colonização.


Com o apoio do governo português, que forneceu incentivos financeiros e logísticos, os pioneiros começaram a construir as bases do Colonato da Cela — um projeto ambicioso que não apenas prometia transformar a região em um polo agrícola, mas também modernizar sua infraestrutura com estradas, escolas e postos de saúde, criando uma sociedade onde colonos portugueses e angolanos pudessem prosperar juntos.


2. A Construção do Colonato

Após a chegada dos pioneiros à região da Cela, iniciou-se uma fase crucial: a construção de uma nova sociedade baseada na agricultura moderna. O Colonato da Cela foi concebido como um projeto que combinava desenvolvimento econômico e social, onde a agricultura não só sustentaria os colonos, mas também impulsionaria a economia local, criando uma base sólida para futuras gerações.


A terra, embora fértil, estava coberta por densa vegetação, e as condições climáticas — alternando entre chuvas torrenciais e secas intensas — complicavam os esforços iniciais. O terreno irregular exigia a construção de terraços, enquanto florestas inteiras precisavam ser desbravadas para abrir espaço para as plantações. Foi nesse cenário desafiador que os pioneiros, liderados por engenheiros experientes como Boa Ventura (o Chefe), Melo, Leitão e Pereira, começaram a trabalhar incansavelmente.


Nos primeiros anos, a colaboração entre recém-chegados colonos portugueses e angolanos foi essencial para o sucesso do projeto. Os angolanos locais, com seu conhecimento profundo das condições climáticas e do solo, ajudaram a adaptar as técnicas agrícolas europeias às especificidades da terra africana. Juntos, eles introduziram práticas agrícolas inovadoras que permitiram não só a sobrevivência, mas a prosperidade das fazendas.


Entre os pioneiros estava o engenheiro Boa Ventura, que liderou diversas iniciativas, incluindo a implementação de sistemas de irrigação e a introdução de novas culturas. A irrigação era fundamental para garantir a produtividade das fazendas, e sistemas de canais e terraços foram construídos para maximizar o uso da água disponível. Com o tempo, foram introduzidas tecnologias de irrigação por aspersão, aumentando ainda mais a eficiência no uso da água, o que foi crucial durante as estações secas.


Um dos maiores sucessos do Colonato da Cela foi a criação das fazendas leiteiras. Reconhecendo o potencial da região para a criação de gado leiteiro, os pioneiros importaram raças bovinas europeias, como Dinamarquesa, Holandesa e Jersey, conhecidas pela alta produtividade de leite. Essas raças adaptaram-se surpreendentemente bem ao clima angolano, e o manejo cuidadoso do gado, aliado às práticas modernas de alimentação e inseminação artificial, garantiu que as fazendas rapidamente se tornassem altamente produtivas.


A produção de leite não apenas sustentava os colonos e impulsionava a economia local, como também levou à criação da Empresa de Laticínios de Angola (ELA). A ELA processava o leite das fazendas, transformando-o em derivados de alta qualidade, como queijo, manteiga e leite pasteurizado engarrafado, que não só abasteciam a região e outras partes de Angola, mas também eram exportados para a Europa. Esse sucesso na produção de laticínios transformou o Colonato em um próspero centro econômico, atraindo investimentos e ganhando reconhecimento em todo o país.


Paralelamente ao desenvolvimento agrícola, os pioneiros entenderam que a infraestrutura social era igualmente importante. Estradas de terra batida foram abertas para conectar as aldeias ao centro do Colonato, facilitando o transporte de pessoas e mercadorias. Pontes foram construídas para atravessar rios e riachos, e aldeias planejadas começaram a surgir, cada uma equipada com escolas, postos de saúde e sistemas de abastecimento de água. Os engenheiros envolvidos na construção, como meu pai, também se dedicaram a garantir que cada aldeia tivesse torres de água, essenciais para o abastecimento das famílias e para o sucesso das fazendas.


Aqui está a lista das 15 aldeias criadas no Colonato da Cela, com o número de casas construídas em cada uma:

  1. Vimieiro – 29 casas

  2. Freixo – 26 casas

  3. Santiago de Adeganha – 26 casas

  4. Pena – 30 casas

  5. Santa Isabel – 24 casas

  6. Monsanto – 29 casas

  7. Carrasqueira – 28 casas

  8. Lardosa – 26 casas

  9. Sé Nova – 24 casas

  10. Vila Viçosa – 28 casas

  11. Gradil – 28 casas

  12. Macedo de Cavaleiros – 24 casas

  13. Alqueidão – 28 casas

  14. Melo – 26 casas

  15. São Mamede – 21 casas


Cada aldeia foi cuidadosamente planeada para garantir que as famílias tivessem acesso a serviços básicos, como saúde e educação. As escolas nas aldeias ofereciam educação primária, enquanto a Escola Industrial e Comercial Narciso do Espírito Santo foi fundada para fornecer treinamento técnico em áreas como agricultura, pecuária e mecânica agrícola. Essa abordagem educacional preparou a próxima geração de colonos e angolanos para assumir papéis de liderança na continuação do desenvolvimento da região.


Ao longo desse período, a madre Berta, juntamente com outras mulheres pioneiras, desempenhou um papel fundamental na gestão dos postos médicos e no apoio à saúde das famílias locais. O compromisso com o bem-estar da comunidade era uma prioridade, e a saúde pública foi uma área em que os pioneiros investiram fortemente.


A construção do Colonato da Cela foi um esforço monumental que exigiu uma combinação de inovação tecnológica, colaboração cultural e uma visão clara para o futuro. O sucesso da agricultura e da pecuária foi apenas parte da história — a verdadeira conquista foi a criação de uma sociedade próspera e integrada, onde portugueses e angolanos trabalhavam lado a lado para construir um futuro comum.


3. Progresso Multirracial e Desenvolvimento Comunitário

À medida que o Colonato da Cela se desenvolvia, surgia uma nova dinâmica social que unia colonos portugueses e angolanos. Desde o início, ficou claro para os pioneiros que o sucesso do projeto dependia não apenas da tecnologia e da infraestrutura, mas também da colaboração entre as diferentes comunidades que viviam na região. O Colonato da Cela tornou-se um modelo raro de progresso multirracial, onde o conhecimento local e as inovações trazidas pelos colonos europeus se complementavam, criando uma sociedade integrada e próspera.


A convivência e a cooperação entre portugueses e angolanos foram fundamentais para o crescimento do Colonato. Enquanto os portugueses introduziam novas técnicas agrícolas e maquinário avançado, as comunidades locais compartilhavam seu conhecimento profundo da terra, do clima e das tradições agrícolas que haviam passado por gerações. Essa troca de saberes foi essencial para adaptar as práticas europeias às condições africanas, garantindo uma produção agrícola sustentável e de alta qualidade.


Os agricultores locais desempenharam um papel importante, ensinando aos pioneiros como trabalhar com as estações de Angola e como utilizar as plantas nativas para maximizar a produção. Em contrapartida, os portugueses introduziram técnicas de irrigação e inseminação artificial para melhorar a pecuária e aumentar a produtividade das fazendas leiteiras. Esse intercâmbio gerou uma atmosfera de respeito mútuo e confiança entre os dois povos, criando uma base sólida para o desenvolvimento comunitário.


A educação desempenhou um papel central na promoção desse progresso multirracial. Escolas foram construídas em todas as 15 aldeias do Colonato, oferecendo educação primária tanto para crianças portuguesas quanto para crianças angolanas. Esse era um conceito inovador na época, já que muitas áreas coloniais mantinham rígidas segregações raciais nas oportunidades educacionais. No Colonato da Cela, crianças de diferentes origens estudavam lado a lado, aprendendo não apenas as habilidades básicas de leitura, escrita e aritmética, mas também práticas agrícolas e técnicas avançadas que preparariam a próxima geração para liderar o futuro da região.


A Escola Industrial e Comercial Narciso do Espírito Santo, fundada no Colonato, oferecia cursos técnicos em Agricultura, Eletricidade, Comércio. Na junta ensinavam Pecuária e Mecânica Agrícola. Jovens portugueses e angolanos tinham a oportunidade de aprender novas habilidades que garantiriam a continuidade do desenvolvimento do Colonato. Além disso, muitos desses jovens assumiram posições de liderança nas fazendas e projetos comunitários, promovendo a colaboração contínua entre as duas comunidades.


A saúde pública também foi uma área de cooperação. Postos médicos foram estabelecidos em todas as aldeias, garantindo que tanto portugueses quanto angolanos tivessem acesso a cuidados básicos. O hospital central em Cela, onde minha tia trabalhou como voluntária, era o principal centro de atendimento, oferecendo serviços médicos mais avançados e tratamentos para doenças tropicais. Além disso, programas de vacinação e educação em saúde foram introduzidos, melhorando significativamente a qualidade de vida e reduzindo a mortalidade infantil. Esses esforços conjuntos reforçaram os laços entre as comunidades, demonstrando que a prosperidade do Colonato estava diretamente ligada ao bem-estar de todos os seus habitantes.


O sucesso econômico do Colonato da Cela não teria sido possível sem o empoderamento econômico das comunidades locais. À medida que as fazendas e a produção leiteira cresciam, os trabalhadores angolanos receberam treinamento em novas técnicas agrícolas, carpintaria, alvenaria e pecuária, o que lhes permitiu desempenhar papéis cada vez mais importantes na gestão das fazendas e na construção das aldeias. Com o tempo, muitos desses trabalhadores se tornaram artesãos qualificados e líderes respeitados em suas comunidades, o que fomentou um sentimento de pertencimento e responsabilidade compartilhada no Colonato.


O intercâmbio cultural entre portugueses e angolanos também floresceu. As celebrações comunitárias, como festivais religiosos e o vibrante Carnaval multiétnico, uniam pessoas de diferentes origens em momentos de alegria e integração. A música e a dança tornaram-se pontes culturais, com canções tradicionais portuguesas se misturando aos ritmos africanos, criando uma expressão única que refletia a diversidade e a harmonia da comunidade. O Carnaval, em particular, era uma ocasião especial, onde portugueses e angolanos desfilavam juntos pelas ruas ao som de tambores, trajes coloridos e danças que celebravam essa fusão cultural.


Além das celebrações, as tradições culinárias também se fundiram, criando um cenário único de intercâmbio. Os portugueses trouxeram consigo pratos como bacalhau e caldo verde, enquanto as comunidades locais compartilharam receitas tradicionais angolanas, como funge e muamba. Essas trocas de alimentos tornaram-se símbolos de integração e convivência pacífica.


À medida que o Colonato da Cela prosperava, a convivência multirracial e a cooperação econômica e cultural tornaram-se os pilares de uma sociedade que, por um breve período, parecia ter encontrado uma fórmula para o progresso compartilhado. A crença de que diferentes povos, quando unidos por um objetivo comum, poderiam construir algo maior do que suas diferenças individuais foi a força motriz que guiou o sucesso do Colonato.


Entretanto, à medida que Angola se aproximava do cenário global de tensões políticas, as fundações desse progresso multirracial começavam a ser ameaçadas. As nuvens escuras da Guerra Fria e os movimentos revolucionários colocariam à prova tudo o que foi construído com tanto esforço. Ainda assim, o legado de integração e cooperação permaneceria como um exemplo do que poderia ter sido o futuro de Angola.


4. A Ameaça da Guerra Fria e a Defesa Local

Em 1961, Angola tornou-se um campo de batalha inesperado dentro do grande conflito ideológico da Guerra Fria. O que começou como uma luta legítima pela independência do domínio colonial português rapidamente foi cooptado pelas superpotências globais — a União Soviética, os Estados Unidos e a China —, que viam no país uma oportunidade estratégica para expandir suas respectivas influências na África. Cada uma dessas potências ofereceu apoio militar e financeiro a diferentes grupos angolanos, transformando o que poderia ter sido uma transição pacífica em um conflito brutal e prolongado.


A União Soviética e Cuba apoiaram o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de ideologia marxista-leninista, enquanto os Estados Unidos, em conjunto com o regime de Mobutu no Zaire, apoiaram a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). A China, por sua vez, forneceu apoio inicial à União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), que posteriormente também receberia ajuda dos EUA e da África do Sul. Assim, Angola se tornou um palco para as batalhas por procuração da Guerra Fria, com cada superpotência usando o território para avançar seus interesses globais, enquanto a população local suportava o peso da guerra.


Para os habitantes do Colonato da Cela, que até então viviam em um ambiente de progresso e cooperação multirracial, a guerra parecia uma ameaça distante. No entanto, isso mudou rapidamente em 1961, quando o levante armado começou a se espalhar pelo país. A guerra chegou à Cela de maneira abrupta, com rumores de ataques insurgentes e ações violentas que se aproximavam da região. Meu pai, João de Deus Chaves, e outros líderes da comunidade foram forçados a tomar medidas drásticas para proteger suas famílias e vizinhos.


Em abril de 1961, com a ameaça de um ataque iminente, os homens do Colonato organizaram uma milícia local para defender a região. Armados com rifles Mauser e outras armas obtidas clandestinamente, eles patrulhavam as fronteiras da comunidade dia e noite, buscando proteger as famílias e garantir a segurança dos mais vulneráveis. Enquanto meu pai percorria as fronteiras com uma metralhadora Mauser nas mãos, minha mãe estava no Hospital da Cela, onde meu irmão nasceria dois dias depois, em 17 de abril de 1961. As tensões eram extremas, e cada dia sem um ataque direto era considerado uma vitória temporária.


A situação se complicava ainda mais pela falta de apoio militar direto do governo português. O exército estava sobrecarregado e concentrado em outras regiões de Angola, deixando comunidades como o Colonato da Cela praticamente por conta própria. Foi então que os líderes locais, como meu pai, decidiram adquirir armas de fora para reforçar a defesa. Em uma operação clandestina, um carregamento de rifles e munições chegou à Cela em um voo noturno, aterrissando em uma pista improvisada iluminada pelos faróis dos carros da comunidade. Essa engenhosidade e coragem mostraram a resiliência dos pioneiros diante de uma ameaça crescente.


A chegada das armas proporcionou um alívio temporário, mas o perigo era constante. O Colonato, situado em uma região relativamente isolada, tornou-se um alvo potencial para os insurgentes, que queriam desestabilizar o controle português e tomar áreas estratégicas. Guerrilheiros, treinados e apoiados pela União Soviética e Cuba, começaram a infiltrar-se na região, espalhando o medo e a incerteza.


A crescente influência dos movimentos revolucionários também afetava diretamente a estabilidade interna da comunidade. Um dos episódios mais chocantes envolveu o padre local, Padre Alfredo, que inicialmente era visto como uma figura respeitada, mas que havia se aliado aos insurgentes revolucionários. Juntamente com seu grupo, ele planejou ataques brutais, incluindo a eliminação completa da população branca da região, sem distinção entre homens, mulheres e crianças. Os relatos sobre o treinamento brutal de insurgentes, com táticas desumanas que incluíam o assassinato de crianças jogando-as contra paredes, deixaram a comunidade em estado de alerta constante e reforçaram a necessidade de manter uma defesa forte.


Com o tempo, a milícia do Colonato tornou-se a única linha de defesa da comunidade. Os homens da região, embora não fossem soldados treinados, assumiram a responsabilidade de proteger suas famílias e o legado que haviam construído com tanto sacrifício. Durante o dia, trabalhavam para reforçar as posições defensivas ao redor das aldeias, enquanto à noite patrulhavam as áreas mais vulneráveis. O Hospital da Cela, onde mulheres e crianças se abrigavam, tornou-se um dos pontos mais fortificados da comunidade, com homens armados protegendo o local a todo momento.


Enquanto isso, as mulheres mantinham as tarefas domésticas e cuidavam dos filhos, tentando criar uma sensação de normalidade em meio ao caos. Minha mãe, assim como outras mulheres da comunidade, desempenhou um papel crucial, não apenas como mãe, mas também como suporte emocional para os homens que estavam na linha de frente.


Apesar de todos os esforços da comunidade para se proteger, a insegurança era constante. Sem o apoio militar de Lisboa e com a ameaça crescente de um ataque, a comunidade vivia com a incerteza sobre o futuro. As notícias de ataques a outras partes de Angola apenas aumentavam o medo, e o Colonato da Cela sabia que era apenas uma questão de tempo até que enfrentassem diretamente as forças insurgentes.


A Guerra Fria, que parecia uma disputa distante entre superpotências, havia chegado à porta do Colonato. A paz e a prosperidade que os pioneiros haviam construído estavam agora em jogo, e a comunidade estava determinada a lutar para proteger tudo o que haviam conquistado. Porém, mesmo com a bravura e a resistência dos pioneiros, as tensões globais e os movimentos revolucionários estavam transformando Angola em um novo campo de batalha — e o destino do Colonato da Cela se tornava cada vez mais incerto.


5. Traição e Legado

À medida que a Guerra Fria se intensificava e o conflito em Angola se tornava mais brutal, o sonho dos pioneiros do Colonato da Cela começou a desmoronar. O projeto de uma Angola próspera e integrada, que eles haviam trabalhado tanto para construir, estava sendo destruído por forças externas e internas que não compartilhavam da mesma visão. O que começou como um movimento legítimo pela independência de Angola havia se transformado em uma guerra por procuração, onde superpotências como a União Soviética, os Estados Unidos e a China utilizavam o país como um campo de batalha para seus interesses geopolíticos.


Os pioneiros, como meu pai e meu avô, João de Deus Chaves e João da Rocha Machado Salvador, viram suas esperanças de um futuro melhor serem corroídas pela crescente violência e instabilidade. A colaboração multirracial e o progresso comunitário que haviam promovido no Colonato da Cela foram desfeitos pelos conflitos globais e pelas divisões internas. Angola, um país que poderia ter se tornado um exemplo de desenvolvimento compartilhado, foi traída por potências estrangeiras que buscavam apenas seus próprios interesses.


Com a escalada da guerra civil após a independência em 1975, o Colonato da Cela — assim como muitas outras áreas de Angola — foi devastado. As fazendas leiteiras, as escolas, os postos de saúde e as aldeias planejadas, que haviam sido os pilares do progresso na região, foram destruídos ou abandonados. A guerra, alimentada pelo apoio militar estrangeiro aos diferentes movimentos revolucionários, desmantelou tudo o que os pioneiros haviam construído. A luta pela sobrevivência substituiu o otimismo pelo futuro.


As forças cubanas, aliadas ao MPLA, e as intervenções da África do Sul e dos Estados Unidos, apoiando a UNITA e o FNLA, transformaram Angola em um dos principais campos de batalha da Guerra Fria no continente africano. A guerra civil que se seguiu à independência foi longa e brutal, deixando milhares de mortos e milhões de deslocados. As esperanças de uma Angola unida e próspera desapareceram em meio ao caos.


Para as famílias pioneiras que haviam dedicado suas vidas à construção de Angola, como a minha, essa destruição foi sentida como uma traição. Não apenas pelas potências estrangeiras, mas também pelas narrativas subsequentes que distorceram ou apagaram suas contribuições. Muitas vezes, os pioneiros são retratados de maneira simplista como "colonos", sem o devido reconhecimento pelo papel crucial que desempenharam no desenvolvimento econômico e social de Angola.


O legado dos pioneiros, entretanto, não foi completamente apagado. As memórias das comunidades que floresceram, dos laços culturais que foram estabelecidos e das realizações tecnológicas e sociais permanecem vivas nas histórias contadas pelas gerações seguintes. Meu pai e meu avô, juntamente com outros pioneiros, acreditavam profundamente no potencial de Angola como uma nação multirracial e próspera. Eles acreditavam que o trabalho conjunto de portugueses e angolanos poderia construir uma sociedade mais justa e igualitária, e seu exemplo de determinação e coragem ainda inspira aqueles que conhecem a verdadeira história.


Apesar de a história oficial muitas vezes ignorar ou distorcer o papel dos pioneiros, é importante lembrar que eles foram os verdadeiros construtores de Angola. Foram eles que enfrentaram as dificuldades da terra, o isolamento, e os desafios políticos para transformar uma região inexplorada em um centro agrícola e comunitário próspero. Eles lançaram as bases para o que poderia ter sido uma Angola muito diferente, se não fosse pelas intervenções externas e os conflitos que se seguiram.


Se as superpotências tivessem permitido que Angola seguisse seu próprio caminho, talvez o progresso iniciado no Colonato da Cela tivesse florescido. O modelo de desenvolvimento comunitário, baseado na cooperação, inovação agrícola e convivência multirracial, poderia ter se expandido para todo o país, proporcionando uma base sólida para uma Angola unida e moderna. No entanto, a intervenção estrangeira e o apoio militar a diferentes facções políticas transformaram Angola em um campo de batalha prolongado, onde o custo foi pago pela população civil.


Mesmo assim, o espírito de resiliência e esperança que guiou os pioneiros nunca foi completamente destruído. O que eles construíram, embora tenha sido devastado pela guerra, permanece como um exemplo do que é possível quando diferentes povos se unem para um bem comum. A história de meu pai, meu avô e de todos os outros pioneiros que ajudaram a modernizar Angola é uma lição de perseverança diante das adversidades e uma prova de que, mesmo nos momentos mais sombrios, o espírito humano pode alcançar grandes feitos.


O legado do Colonato da Cela, com suas fazendas, escolas e comunidades integradas, continua a ser um testemunho de que, com trabalho árduo e cooperação, é possível construir algo duradouro e significativo. Embora o sonho dos pioneiros tenha sido interrompido pela guerra, seu exemplo continua a inspirar aqueles que ainda acreditam em uma Angola mais justa e próspera.



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