Explorando a Rica Cultura de Angola e Portugal
Silêncios da Descolonização: O Testemunho de um Refugiado
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1. Introdução
Nasci em Angola, numa época em que o país pulsava com a esperança de um futuro promissor. As minhas primeiras memórias estão entrelaçadas com o calor do sol africano, os sons vibrantes das ruas de Luanda e o labor incansável dos meus pais e avós, que contribuíram para o desenvolvimento de uma nação em construção. Cresci num ambiente de diversidade cultural, onde o português se misturava com os idiomas locais, e onde a esperança de um futuro próspero era partilhada por muitos.
Contudo, essa esperança foi abruptamente interrompida pelos ventos da descolonização. A Revolução dos Cravos, em abril de 1974, em Portugal, desencadeou um processo acelerado de independência nas colónias africanas. Em Angola, esse processo foi particularmente tumultuoso, marcado por conflitos entre os principais movimentos de libertação — MPLA, FNLA e UNITA — e pela intervenção de potências estrangeiras, mergulhando o país numa guerra civil que perduraria por décadas.
Em meio a esse caos, milhares de famílias, incluindo a minha, viram-se forçadas a abandonar tudo o que conheciam. Deixámos para trás não apenas bens materiais, mas também laços afetivos, memórias e uma identidade construída ao longo de gerações. Chegámos a Portugal como refugiados, enfrentando desafios de integração, preconceitos e a dor do exílio.
Este artigo é um testemunho pessoal dessa experiência, uma tentativa de dar voz aos silêncios que marcaram a descolonização angolana. Ao partilhar a minha história, espero contribuir para a compreensão coletiva desse período histórico, homenageando aqueles que, como eu, viveram o drama do exílio e a luta pela reconstrução de uma nova vida.
2. Antes de 1975: Memórias de uma Angola em Construção
Antes de 1975, Angola era uma terra de contrastes e esperanças. Cresci num ambiente onde a diversidade cultural era palpável, com influências portuguesas entrelaçadas com as tradições locais. As cidades, como Luanda e Benguela, pulsavam com atividade, e havia um sentimento generalizado de progresso e desenvolvimento.
A economia angolana, embora marcada por desigualdades, mostrava sinais de crescimento. A agricultura, a indústria e o comércio floresciam, e muitos, como a minha família, investiam no futuro do país com trabalho árduo e dedicação. As escolas estavam cheias de jovens ansiosos por aprender, e havia uma sensação de que Angola estava a caminho de se tornar uma nação próspera e independente.
No entanto, por trás dessa fachada de progresso, existiam tensões latentes. As disparidades sociais e económicas entre diferentes grupos étnicos e raciais eram evidentes, e o sistema colonial impunha limitações significativas à maioria da população. Apesar disso, muitos de nós acreditávamos num futuro melhor, onde todos os angolanos poderiam viver em harmonia e prosperidade.
Estas memórias de uma Angola em construção são preciosas para mim. Representam uma época de esperança e de sonhos, que foram abruptamente interrompidos pelos eventos que se seguiram. Ao recordar esse período, sinto uma mistura de nostalgia e tristeza, mas também um profundo orgulho pelas raízes que me moldaram.
3. O Processo de Descolonização: Da Esperança ao Êxodo
A Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, em Portugal, marcou o início de uma nova era para as colónias africanas, incluindo Angola. O regime ditatorial do Estado Novo foi derrubado, e com ele veio a promessa de descolonização e autodeterminação para os territórios ultramarinos. Para muitos angolanos, este momento foi recebido com esperança e entusiasmo, vislumbrando a possibilidade de um futuro independente e próspero.
No entanto, a transição para a independência revelou-se mais complexa e turbulenta do que o esperado. Em janeiro de 1975, foi assinado o Acordo do Alvor entre o governo português e os três principais movimentos de libertação angolanos: o MPLA, a FNLA e a UNITA. O acordo estabelecia um governo de transição e previa a proclamação da independência de Angola para 11 de novembro de 1975. Contudo, as divergências ideológicas e a luta pelo poder entre os movimentos rapidamente levaram ao colapso do governo de transição e ao início de confrontos armados.
A situação agravou-se com a intervenção de potências estrangeiras, transformando Angola num campo de batalha da Guerra Fria. O MPLA recebeu apoio da União Soviética e de Cuba, enquanto a FNLA e a UNITA foram apoiadas pelos Estados Unidos, Zaire e África do Sul. Em novembro de 1975, o MPLA proclamou a independência da República Popular de Angola em Luanda, estabelecendo o controlo sobre a capital e outras regiões estratégicas.
Para as famílias portuguesas e luso-angolanas, como a minha, a escalada do conflito e a instabilidade política tornaram insustentável a permanência no país. A insegurança, os confrontos armados e o colapso dos serviços essenciais forçaram-nos a tomar a dolorosa decisão de abandonar Angola, deixando para trás as nossas casas, bens e memórias. A partida foi marcada por sentimentos de perda, incerteza e medo do desconhecido que nos aguardava em Portugal.
Este período de transição, que deveria ser de celebração e esperança, transformou-se num êxodo massivo e traumático para centenas de milhares de pessoas. A descolonização de Angola, embora necessária e inevitável, deixou cicatrizes profundas naqueles que foram forçados a partir, carregando consigo as dores de um passado abruptamente interrompido.
4. A Partida e a Chegada: O Início de um Novo Capítulo
A decisão de deixar Angola não foi tomada de ânimo leve. Foi um momento de profunda dor e incerteza, marcado pela necessidade de abandonar tudo o que conhecíamos e amávamos. As ruas familiares, os amigos de infância, os lares construídos com tanto esforço — tudo ficou para trás.
A viagem para Portugal foi uma experiência surreal. Embarcámos com o que conseguíamos carregar, deixando para trás não apenas bens materiais, mas também uma parte significativa das nossas vidas. A bordo dos aviões, o silêncio era cortado apenas pelos suspiros e lágrimas contidas dos passageiros, cada um mergulhado nas suas próprias memórias e preocupações sobre o futuro.
Ao chegar a Portugal, deparámo-nos com uma realidade desconhecida e, por vezes, hostil. Apesar de sermos cidadãos portugueses, muitos de nós sentíamo-nos como estrangeiros na nossa própria terra. Fomos acolhidos em centros de acolhimento improvisados, hotéis convertidos em abrigos temporários e, em alguns casos, instalações militares desativadas. As condições eram precárias, e a sensação de desamparo era avassaladora.
A integração na sociedade portuguesa revelou-se um desafio complexo. Enfrentámos preconceitos e estigmatização, sendo frequentemente rotulados como "retornados", um termo que carregava conotações negativas e que não refletia a complexidade das nossas experiências. Muitos de nós éramos altamente qualificados, com experiência em diversas áreas profissionais, mas encontrámos dificuldades em encontrar emprego e em sermos reconhecidos pelas nossas competências.
Apesar das adversidades, a resiliência e a determinação foram fundamentais para superar os obstáculos. Aos poucos, reconstruímos as nossas vidas, estabelecendo-nos em diferentes regiões de Portugal, contribuindo para o desenvolvimento económico, social e cultural do país. As nossas histórias de superação são testemunhos vivos da capacidade humana de adaptação e perseverança.
5. Reconstrução e Resiliência: A Vida Após o Exílio
A chegada a Portugal, longe de representar o fim das dificuldades, revelou-se o início de um novo e árduo percurso. Éramos cidadãos portugueses, sim, mas sentíamo-nos estrangeiros na nossa própria pátria. Trazíamos no olhar o peso da perda e no coração a nostalgia de uma Angola que nunca deixaríamos verdadeiramente para trás.
Fomos recebidos em centros de acolhimento improvisados: antigos quartéis militares, hotéis devolutos, pensões que não tinham sido feitas para albergar famílias inteiras, carregadas de malas cheias de memórias. O desconforto físico era apenas o reflexo visível da desorientação interior que nos assolava. Dormíamos em camas improvisadas, muitas vezes lado a lado com desconhecidos, partilhando o silêncio pesado das noites que pareciam não ter fim.
A palavra "retornado" caiu sobre nós como um rótulo frio e redutor. Pouco se falava das circunstâncias que nos tinham levado a abandonar Angola — não por escolha, mas por sobrevivência. Fomos muitas vezes vistos como intrusos, como um fardo económico, sem que se reconhecesse a história de esforço, sacrifício e construção que trazíamos connosco. Enfrentámos olhares desconfiados, palavras amargas, portas fechadas.
Procurar trabalho foi, para muitos, um novo calvário. Homens e mulheres que tinham sido empresários, engenheiros, professores, agricultores em Angola viram-se reduzidos a empregos menores, quando não a longos períodos de desemprego. As habilitações que trazíamos eram desvalorizadas; a experiência acumulada no ultramar era ignorada como se pertencesse a um mundo irreal.
Ainda assim, recusámos sucumbir. Havia uma chama silenciosa dentro de nós — alimentada pelo amor próprio, pela dignidade e pelo exemplo dos nossos pais e avós — que nos impelia a seguir em frente. Começámos pequenos: abrindo modestos negócios, aceitando trabalhos indiferenciados, reconstruindo lares com o pouco que tínhamos. Cada conquista, por mais pequena, era uma vitória contra o esquecimento e contra o desalento.
Aos poucos, fomos redesenhando as nossas vidas. Com esforço e perseverança, voltámos a estudar, a formar famílias, a contribuir para a sociedade portuguesa em todas as suas dimensões: na indústria, na agricultura, na educação, na cultura. Não pedíamos favores, apenas oportunidades. E, com o tempo, fomos provando que trazíamos connosco não só saudades, mas também uma força interior inabalável.
A resiliência dos refugiados de Angola — a minha, a da minha família, a de toda uma geração esquecida nos livros de História — foi silenciosa, mas monumental. Erguemo-nos das cinzas do exílio sem renunciar às nossas raízes e, ao mesmo tempo, abraçando a nova terra que agora também era nossa. Portugal mudou-nos, e nós mudámos Portugal, ainda que muitos não o reconheçam.
Cada pedra que pusemos, cada empresa que fundámos, cada filho que educámos em liberdade foi um acto de reconstrução — não só pessoal, mas também nacional. Somos parte de uma história que precisa de ser contada com justiça e dignidade.
Esta secção da minha vida — da nossa vida — não é apenas um capítulo de dor: é, sobretudo, uma ode à capacidade humana de resistir, adaptar e florescer mesmo quando todas as circunstâncias parecem adversas.
6. A Memória como Dever: Honrar os que Partiram, Celebrar os que Ficaram
A experiência do exílio moldou-nos de formas que nem sempre conseguimos exprimir em palavras. Mas se algo se tornou claro ao longo dos anos, é que preservar a memória do que vivemos não é apenas um direito — é um dever.
Recordar Angola tal como a conhecemos — vibrante, promissora, e tragicamente despedaçada — é recusar o esquecimento que tantos nos tentaram impor. Não se trata de reviver feridas por ressentimento, mas de honrar as vidas que foram construídas com esperança e destruídas pela violência da História.
Os nossos pais e avós, que ergueram escolas, hospitais, infraestruturas, campos agrícolas e sonhos em terra africana, merecem ser lembrados não como peças de um colonialismo cego, mas como homens e mulheres que, com trabalho e coragem, procuraram construir um lar digno para as suas famílias. Eles foram construtores de pontes, mediadores de culturas, artesãos silenciosos de uma Angola que poderia ter sido diferente.
As nossas mães, que cuidaram de filhos em tempos de abundância e de escassez, que embalaram gerações inteiras enquanto enfrentavam incertezas e despedidas, merecem que a sua coragem anónima seja reconhecida.
Os nossos avós, que atravessaram oceanos para, pedra sobre pedra, criarem uma nova existência em terras longínquas, deixaram-nos um legado de força que ainda hoje corre nas nossas veias.
E nós, filhos do exílio, herdeiros de uma travessia que não escolhemos, carregamos o fardo e a honra de manter viva esta história. Não como um grito de dor, mas como um testemunho sereno de resistência e de amor.
A memória dos retornados, dos refugiados, dos que partiram sem adeus, não pode ser relegada ao esquecimento por conveniência política ou por vergonha histórica. Cada vida arrancada de Angola transportava consigo um pedaço daquela terra, um fragmento daquela esperança.
Contar a nossa história é também oferecer uma lição às gerações futuras: de que nem todas as vitórias são celebradas com fanfarras, e nem todos os heroísmos vestem fardas. Alguns constroem-se no silêncio obstinado dos que recomeçam quando tudo parecia perdido.
Hoje, ao escrever estas palavras, não o faço apenas por mim, mas por todos nós. Pelos que partiram, pelos que resistiram, pelos que não puderam voltar. Pelos sonhos que ficaram adormecidos nas matas de Angola e pelos novos sonhos que germinaram em solo português.
A nossa memória é a nossa herança. Guardá-la é a mais nobre homenagem que podemos prestar a quem tanto deu sem pedir nada em troca.
7. Conclusão: O Silêncio que Ecoa na Eternidade
Há silêncios que falam mais alto do que qualquer grito.O silêncio dos que partiram, o silêncio dos que resistiram, o silêncio dos que recomeçaram com as mãos vazias e o coração cheio de esperança.
Ao partilhar este testemunho, procurei romper esse silêncio.Não com amargura, mas com o respeito e a reverência que a nossa história exige.Cada memória aqui evocada é uma pedra na construção da verdade — uma verdade que não pode ser esquecida, nem relegada às margens da História.
A vida ensinou-me que os maiores feitos humanos não se medem apenas por conquistas materiais ou vitórias políticas, mas pela capacidade de reerguer-se quando tudo parece perdido.É essa capacidade — essa resiliência silenciosa — que define a minha geração e a daqueles que nos antecederam.
Hoje, mais do que nunca, é imperativo lembrar.Lembrar para honrar.Lembrar para compreender.Lembrar para que nunca mais a ignorância apague o que foi vivido à custa de tanto sacrifício.
Carrego Angola no sangue, Portugal na alma e a coragem dos que me precederam como farol na minha caminhada.E, enquanto houver voz para narrar e memória para preservar, a nossa história continuará a viver — não como uma ferida aberta, mas como uma prova eterna da dignidade humana.
Silenciosamente, mas para sempre, resistiremos na memória dos que ousam não esquecer.
Referências
Chaves, Elmiro. Do Império ao Exílio: o drama dos retornados segundo Ramalho Eanes. ElmiroChaves.com, 2024.
Duarte, Maria João Domingues. Os 'Retornados' das ex-colónias portuguesas: representações e testemunhos. Revista de História da Sociedade e da Cultura, n.º 11, 2011, Universidade de Coimbra.
Marques, A. H. de Oliveira. História de Portugal. Volume III: Portugal Contemporâneo. Palas Editores, Lisboa, 1986.
Pélissier, René. História da Descolonização Portuguesa (1961-1975). Editorial Estampa, Lisboa, 2002.
Rosas, Fernando; Oliveiros, Maria Fernanda. O Marcelismo e a Revolução. Editorial Estampa, Lisboa, 1990.
Testemunhos orais recolhidos ao longo de décadas entre familiares, companheiros de jornada e a própria experiência pessoal do autor.
Notas adicionais:
Mantive as fontes num estilo formal e de fácil leitura, adequado para publicação em livro ou blog.
A referência aos "Testemunhos orais" é importante porque este é, sobretudo, um texto de memória pessoal viva — algo que precisa ser reconhecido como fonte legítima e valiosa.

Testemunho pessoal de João Elmiro da Rocha Chaves
Em honra dos meus pais, João de Deus Chaves e Vivelina Maria Branco da Rocha Salvador Chaves, e de todos os que caminharam no silêncio da descolonização.