Explorando a Rica Cultura de Angola e Portugal

Sobre as Asas do Divino: Das Raízes no Waku Kungo à Poesia que Une Distâncias
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Desde o meu nascimento no Waku Kungo, cresci sentindo o pulsar de Angola em cada batida do coração. Naquele período, o país caminhava rumo à independência, mas vivia as tensões políticas e sociais que prenunciavam conflitos. Eu, ainda criança, percebia os sussurros e inquietações dos adultos em torno das mudanças que se aproximavam. Apesar desse clima, havia uma beleza forte na vida cotidiana: as ruas de pirite ou terra batida, o vento que corria pelos campos e as celebrações que mantinham acesa a chama da esperança.
Mas a minha história não se resume apenas aos desafios políticos: a vida religiosa também desempenhou um papel essencial. Desde muito cedo, estive envolvido na igreja, participando das missas como sacristão e nas atividades comunitárias que ajudavam a dar sentido ao mundo à minha volta. O coro da paróquia ecoava hinos de fé, e nos momentos de oração coletiva, era como se encontrássemos força para encarar as incertezas que rondavam nossa terra. Os ensinos da igreja moldaram não só meus valores pessoais, mas também influenciaram a forma como entendi e enfrentei as dificuldades que surgiram ao longo do caminho.
Ao mesmo tempo, as Festas do Divino Espírito Santo faziam parte de um ciclo de celebrações anuais que uniam a comunidade. Embora a origem dessas festas seja antiga, remetendo às tradições da religiosidade portuguesa, em cada país e cada região elas ganham cores e significados diferentes. A minha família preservava essas tradições, preparando a mesa para o “Bodo”, partilhando a carne, o pão e o vinho, e rezando para que o Divino Espírito Santo derramasse bênçãos sobre todos. Ali, entre bandeiras brancas, coroas de prata e procissões cheias de devoção, eu me sentia parte de algo maior, um elo que ligava gerações e continentes pela fé. Essas festas consolidaram laços de união e me ensinaram o valor do cuidado mútuo, ainda mais importante em tempos de incertezas.
Waku Kungo, com suas paisagens e cultura únicas, foi o cenário onde aprendi sobre a solidariedade e a força que surgem quando a comunidade se mantém unida. Lembro-me das feiras cheias de mangas e do cheiro reconfortante do funge saindo das panelas, enquanto, ao fundo, ouvia-se o canto do coral ensaiando para a próxima missa. Eram memórias de um lar que, mesmo prestes a mergulhar em transformações históricas, ainda encontrava na fé e na partilha a sua base de equilíbrio.
Contudo, a vida me levou a deixar Angola. A migração foi um marco: o avião que me transportou para longe era também o navio invisível onde eu guardava, em pequenas malas, as minhas lembranças mais queridas — da igreja, das festas, dos hinos e das procissões que celebrávamos em comunidade. A saudade se tornou uma companheira constante, mas foi justamente ela que impulsionou meu encontro definitivo com a poesia.
Nos versos que escrevo, encontro a melhor forma de recordar, de entender e de reconectar as partes que ficaram espalhadas pelo caminho. A poesia surgiu para acolher a saudade e transformar o que antes era dor em narrativa, em testemunho vivo de quem eu sou. Entre uma celebração do Divino Espírito Santo e outra, entre as memórias de Angola e as paisagens do presente, as palavras se tornaram meu refúgio e meu guia.
Nos campos de Angola, o som do vento clama,
Memórias dispersas pelo tempo a vagar,
Desde Waku Kungo, onde o sol vem brilhar,
Trazendo em seu ventre a dor que não se chama.
As vozes distantes de um tempo que inflama,
Perdidas na bruma, tentam se encontrar,
Nas páginas da vida, onde o olhar, ao buscar,
Encontra os pedaços que o destino trama.
O meu coração, com saudades do chão,
Recolhe em versos, com carinho e emoção,
As raízes de um lar que nunca esqueci.
E assim, a missão da minha poesia,
É unir os fragmentos que a vida partia,
Renascer em palavras o que sempre vivi.
A minha caminhada até aqui foi marcada por aprendizados constantes. Os valores que trago da minha vivência na igreja — compaixão, partilha, fé — mesclados ao sentido profundo de comunidade que aprendi nas Festas do Divino Espírito Santo, tornaram-se referências para enfrentar desafios e abraçar oportunidades. A cada mudança de cidade ou país, carrego comigo essas tradições como se fossem um relicário. Guardei na lembrança as promessas que fiz ao Divino, as coroas ornamentadas com fitas coloridas e os sorrisos estampados nos rostos de quem celebrava a esperança em meio às dificuldades.
Hoje, compreendo melhor que a poesia não é apenas uma forma de arte, mas sim o fio que amarra passado e presente, dor e alegria, minha terra natal e o lugar onde estou agora. Cada verso funciona como um pequeno altar onde deposito as histórias que vivi e a fé que me sustenta. As imagens de Waku Kungo, dos cânticos de missa e das bandeiras brancas das Festas do Divino Espírito Santo se fundem nas rimas, criando uma tessitura única, tão pessoal quanto universal.
E, assim, renovo meu compromisso: seguir adiante, reverenciando as raízes deixadas em Angola, valorizando as festas e cerimônias religiosas que alimentaram em mim a chama da esperança e da união, e mantendo viva, a cada nova estrofe, a essência de quem sempre serei. Minha história continua viva nas palavras que escrevo, erguendo pontes entre o que ficou e o que virá — um percurso em que a poesia, a fé e as minhas tradições familiares continuam a guiar meus passos.
É desta forma que encontro sentido em cada retalho de memória, convertendo distâncias em versos e saudades em canções. A cada passo que dou, reafirmo a certeza de que, onde quer que eu me encontre, guardo comigo a força de Angola, o calor da comunidade e a presença constante do Divino Espírito Santo. E, ao partilhar as minhas histórias, dou-me conta de que jamais abandonei verdadeiramente aquele lar — ele permanece vivo em mim, florescendo em cada poema e em cada celebração, unindo-me ininterruptamente às minhas raízes e à minha fé.


